Em ‘Meia-noite e vinte’, Daniel Galera fala dos bugs de dois milênios

Redação Recorte Lírico

Porto Alegre, bá, estava bem longe do trilegal nos primeiros meses de 2014: do nada, uma tsunami de calor lambeu a capital gaúcha, que ainda padecia com uma greve dos transportes públicos e com o aumento da violência, em meio a cenas dantescas de moradores de rua revirando nauseabundos contêineres de lixo. Baixo astral, sinais do apocalipse, que não escaparam a um de seus mais ilustres moradores, o escritor Daniel Galera. “Meia-noite e vinte”, seu mais novo romance, que chegou esta semana às lojas (é o primeiro desde “Barba ensopada de sangue”, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013) começou a tomar forma ali, naquele conturbado verão.

— Pela primeira vez senti um temor de que pudesse haver um colapso iminente da sociedade e do clima — aponta, por telefone de São Paulo, Galera, 37 anos, um dos jovens que na virada de 1999 para 2000 viveram apreensão semelhante, à espera dos desdobramentos terríveis do bug do milênio e/ou da confirmação das profecias de Nostradamus. — Mas ali (em 2014) era diferente, com acontecimentos históricos e climáticos muito graves se acumulando. A minha pergunta foi como a ideia de fim do mundo nos afetava na virada do milênio e como ela nos afeta agora.

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Imagem: Reprodução
As respostas vieram nas falas e ações de quatro protagonistas/narradores: o jornalista Emiliano, a bióloga Aurora, o publicitário Antero e o escritor Andrei. Amigos que, no final dos anos 1990, participavam de um mesmo fanzine virtual em Porto Alegre, o Orangotango. E que, separados pela vida, voltam a se encontrar na cidade, naquele fatídico verão de 2014, no enterro de Andrei, assassinado num assalto à mão armada.

— Há alguns anos tive a ideia de pegar a experiência que tive com alguns amigos no fanzine (eletrônico) CardosOnline (que existiu entre 1998 e 2001) e com a cena cultural de Porto Alegre para fazer um romance que tentasse retratar aquela época e aquela turma. No fim eu acabei não seguindo essa ideia ao pé da letra, ela virou apenas um dos elementos da história, porque outras coisas foram acontecendo — explica o escritor. — Não há nenhum personagem que corresponda a uma pessoa real, que seja inspirado em alguém. Eles são composições de várias ideias de personagens, com traços de pessoas que conheci.

Primeiro livro de Daniel Galera com mais de um narrador, “Meia-noite e vinte” pôs o escritor em algumas sinucas de bico (“quanto mais vozes, mais complicado fica escrever”, admite).

— Chegou um momento em que eu entendi que este não seria um livro muito longo. E acabei adensando cada um desses quatro personagens em vez de fazer um livro com oito, por exemplo — diz. — São quatro pessoas que estão afastadas desde a virada do milênio, mas que estão entremeadas nos afetos e nas histórias pessoais. E tudo isso volta a se reforçar no momento em que um deles morre. As coisas voltam, eles acabam se ajudando ao compartilhar suas crises e frustrações, apesar de a relação de amizade não ser linda e redondinha.

Os paralelos com a própria pessoa de Galera existem aqui e ali, tanto nas pesquisas de Andrei (“comecei a ler mais sobre mudança climática, ideias filosóficas acerca de fim do mundo, crescimento populacional e ecologia. Brinco que o livro que ele estava tentando escrever teria o mesmo universo temático do meu”, confessa) quanto na relação do personagem com a tecnologia.

— Com o Andrei eu tentei trabalhar essa coisa de como, com a profusão das redes sociais, o trabalho de uma pessoa persiste. As pessoas seguem falando dela, fazendo teorias, comentando no Twitter, publicando coisas — observa Galera, para quem “a internet evoluiu, mas a literatura permaneceu relativamente inalterada”. — A minha geração pensava que uma nova literatura iria surgir, uma literatura que ia incluir hiperlink, hipermídia, com narrativas interativas, textos mais curtos, fragmentados. E o que a gente vê não é isso. Os romances e contos que vão para as listas de mais vendidos e que ganham prêmios não são diferentes daqueles que existiam. E não é literatura o que se está fazendo nas redes sociais, é outra coisa, uma forma de comunicação generalizada, sem o mesmo tipo de pretensão ou cuidado artístico. Talvez seja arte até, mas não é o que a gente entende como literatura.

Com personagens que esbarram, com surpresa, em arquivos digitais de quase 20 anos atrás (“ao abrir hoje as primeiras fotos digitais, elas ficam tão pixeladas que provocam uma sensação estranha. Até pouco tempo atrás aquilo era um registro de alta definição, encantador”, repara), “Meia-noite e vinte” serve como um mote para Daniel Galera olhar para trás e, sim, ceder um pouco ao saudosismo:

— Se você pensar hoje num jovem de 18 anos que quer publicar contos ou textos sobre a própria experiência, ele vai diretamente ao Facebook ou ao Tumblr, já é dada a fórmula de como fazer. A gente tinha que criar os próprios espaços, e hoje eles são dados pelas grandes corporações, como o Google.

 “Nós tivemos a oportunidade de encenar nosso apocalipse de mentirinha, eu, Aurora, Emiliano e Andrei. Para que o fim do mundo não nos atingisse, passamos a virada do milênio acampados num sítio isolado que pertencia à família de Emiliano, um lugar de morros pedregosos, perto da região carborífera, sem energia elétrica nem outros seres humanos num raio de muitos quilômetros. Brindamos ao apocalipse com cachaça mineira e assamos ovelha no fogo de chão. As festas de Ano-Novo ao redor do globo no ano dois mil ocorreram com uma normalidade brochante e o bug do milênio foi esquecido na ressaca do dia primeiro de janeiro. Quinze anos depois, o que começava a espalhar seus tentáculos pela sensibilidade de gente adulta e esclarecida como Aurora era outra coisa, uma angústia diferente da tensão pré-milênio. A nova angústia era essa expectativa difusa de um sufocamento vagaroso e irreversível, após o qual não restaria nada. Eu não desejava pensar como ela, não queria ser contaminado por aquele pessimismo. Havia construído uma vida boa para mim, liderava uma empresa bem-sucedida e tinha um filho para criar. Eu era um humanista, doava dinheiro para creches comunitárias e crowdfunding de pesquisas para o aperfeiçoamento de painéis solares. Eu acreditava no futuro, na economia criativa e na capacidade do capitalismo de digerir todas as suas contradições, inclusive os apocalipses. O mundo, eu pensava, não precisava ser salvo, e por isso seria salvo justamente por aquelas pessoas que não acreditavam que ele precisava ser salvo.”
Fonte: Jornal O Globo
Da Redação

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