Por que Bob Dylan mereceu ganhar o Nobel de Literatura?

Redação Recorte Lírico

Prêmios Nobel de Literatura são, quase todos os anos, bastante polêmicos. Ora o laureado tem méritos literários questionáveis, ora tem representatividade limitada (um eufemismo para dizer que deram um prêmio para um zé ninguém), ora tem, ao contrário, representatividade demais. Esse último parece ser o caso do escritor, cantor e compositor Bob Dylan, agraciado na edição de 2016. Dono de uma vasta discografia e de uma bibliografia prolífica que, embora relativamente desconhecida do público brasileiro, não pode ser desconsiderada. Dylan, hoje com 75 anos, “criou nova expressão poética na canção americana”, segundo os organizadores do Nobel.

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Prêmio para Dylan gerou controvérsia no meio literário. (Foto: Kevin Winter/AFP)

A crítica em torno da premiação de Bob Dylan parece circundar o fato de que ele é mais cantor do que escritor e pop demais para compartilhar um lugar na história com uma jornalista bielorussa, um tímido e desconhecido romancista francês e um poeta sueco, para citar alguns dos últimos agraciados. Mais do que isso, a comissão organizadora de Estocolmo, com o prêmio, parece querer ignorar a prolífica e expressiva nova prosa americana, marcada por nomes como Philip Roth, Cormac McCarthy, Thomas Pynchon e Don Delillo, já que desde 1993 a láurea não era destinada a um estadunidense – o último foi para a escritora Toni Morrison. e achou-se por bem que o criador de “The Freewheelin’” deveria chegar na frente de um prêmio centenário.

Entre os que acompanham o Nobel, a nomeação de Bob Dylan já ganhava ares de piada interna. A dinamarquesa Anne-Marie Mai era uma das poucas entre os 18 membros da da Academia Sueca a revelar publicamente seu voto, e não só, apoiar o cantor de “Blowin’ in the Wind”. Estimava-se que Dylan, que tem 50 anos de carreira, já tivesse sido indicado várias vezes, mas que o apoio de Mai tivesse sido sistematicamente enfraquecido pela popularidade da faceta musical do artista. O site Ladbrokes, de corretagem de apostas, estava pagando 25 para 1 em Bob Dylan. Tradicionalmente, a casa é usada por especuladores para tentar antever o ganhador do ano, mas esse ano foi uma exceção. Quem apostou, ganhou uma bolada.

Razões

O Nobel é um prêmio com conotações políticas, e há razões específicas para a literatura ser a única arte contemplada pela Academia que o concede. A literatura, mais do que a música, o cinema, as artes plásticas ou o teatro, tem um alcance global. Pode ser traduzida, multiplicada, reproduzida e é facilmente conservada, não precisando mais do que a alfabetização para absorvê-la. Uma popularização que conceitualmente vai de encontro aos detratores do cantor, portanto. Mesmo assim, a nomeação de Dylan, considerado até o momento o laureado menos ortodoxo desde o dramaturgo italiano Dario Fo (cujas peças só eram completamente compreendidas se executadas), pode significar não um distanciamento da Academia Sueca da literatura, mas de uma compreensão holística de seu conceito em sintonia com as circunstâncias em que é produzida.

Para o ensaísta e medievalista Paul Zumthor, artistas como Bob Dylan se inserem em uma tradição de oralidade que é anterior à literatura como a conhecemos hoje, mas nem por isso menos literatura. Zumthor, que propõe uma tradição poética oral que vai de Homero a Bob Dylan por um viés sobretudo antropológico, coloca uma possibilidade desconcertante em seus estudos: a de que a literatura escrita represente apenas um hiato na história literária da humanidade – algo como um mero modismo tecnológico – e que o surgimento do rap e do folk como representação dessa oralidade, marque o declínio já verificado da escrita como arte e da cultura livresca em geral. Ele usa como base a tradição da poesia medieval.

“É de uma cultura de massa que se ergue globalmente a poesia medieval, e não de uma ‘literatura’. (…)Os jograis, os recitantes, os menestreis, gente do verbo formam a imensa maioria daqueles para quem a poesia se insere na existência social: ela aí se insere por meio da voz, único mass medium existente até então, e quanto melhor o texto se presta ao efeito vocal, mais intensamente preenche sua função”, ilustra ele em seu livro “A Letra e a Voz” (Companhia das Letras, 1987).

Ousadia

O tradutor e ensaísta Christian Schwartz, por sua vez, lembra a citação de Antonio Cícero que colocou em nota junto com o tradutor Caetano Galindo, no livro “Atravessar o Fogo – 310 Letras de Lou Reed” (Companhia das Letras, 2010): “’Letra de canção é poema?’ Essa formulação é inadequada. Desde que as vanguardas mostraram que não se pode determinar a priori quais são as formas lícitas para a poesia, qualquer coisa pode ser um poema. Se um poeta escreve letras soltas na página e diz que é um poema, quem provará o contrário?”. Mesmo sendo um fã convicto, Schwartz acha que a premiação a Dylan pode não ter sido das mais adequadas, já que “é da natureza dos textos de Dylan perder força poética quando despidos de melodia, harmonia e ritmo, a ponto de se tornarem ‘ilegíveis’”, mas apreciou a ousadia da Academia como fã do artista. Dylan pode não ser o representante mais óbvio da literatura atual, mas, como ele mesmo diria, “Times are A-Changing”.

Texto de Yuri Al’ Hanati, para o Caderno G da Gazeta do Povo

Da Redação

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