Literatura no Samba – por Verônica Daniel Kobs

Verônica Daniel Kobs

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LITERATURA NO SAMBA
Profa. Dra. Verônica Daniel Kobs*
Na avenida, a fantasia vira realidade
Este ano, o tema da Mocidade Independente de Padre Miguel foi Marrocos, a literatura do Oriente e suas narrativas maravilhosas, que enfatizam o sonho e a imaginação. Por esse motivo, as histórias acentuam a “suspensão da descrença” (Cf. ECO, 1994), característica que, de acordo com Todorov, faz parte do que o autor chama de “maravilhoso exótico”:
Bastante próximo a esta primeira variedade do maravilhoso encontramos o maravilhoso exótico. Relatam-se ali acontecimentos sobrenaturais sem apresentá-los como tais; supõe-se que o receptor implícito dos contos não conhece as regiões nas que se desenvolvem os acontecimentos; por conseqüência, não há motivo para pô-los em dúvida. (TODOROV, 2004, p. 30, ênfase no original)
Além do exótico, outros tipos de maravilhoso contribuem para a singularidade da literatura oriental. Aliás, exemplos dessas histórias são citados pelo próprio Todorov, no livro Introdução à literatura fantástica. O exagero, que o autor relaciona ao “maravilhoso hiperbólico”, surge nas situações inusitadas e incomuns, como demonstrado no trecho a seguir:
Neste caso, os fenômenos são sobrenaturais só por suas dimensões, superiores às que nos resultam familiares. Assim, nas mil e uma noites, Simbad o marinho assegura ter visto “peixes de cem e duzentos cotovelos de longitude” ou “serpentes tão grosas e largas que tivessem podido tragar um elefante” […]. (TODOROV, 2004, p. 30, ênfase no original)
Mas é na terceira modalidade, denominada “maravilhoso instrumental”, que surge a característica que provocou maior efeito, na passarela do samba: o tapete mágico: “Na História do príncipe Ahmed das mil e uma noites, por exemplo, esses instrumentos maravilhosos são, ao princípio, um tapete mágico, uma maçã que cura, uma luneta de longo alcance; […]” (TODOROV, 2004, p. 31), que pode ser visto na foto abaixo:
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Figura 1: Tapete mágico, na abertura do desfile da Mocidade. Imagem disponível em: <http://carnaval.sortimentos.com.br>


A Iracema do samba
            O clássico de José de Alencar foi representado, na Sapucaí, pela Beija-Flor. O samba-enredo foi premiado e conservou a atmosfera do romance romântico, celebrando o indianismo, a natureza e o “feliz” consórcio entre os nossos índios e os portugueses: “Quando a virgem de Tupã se encantou com o europeu / Nessa casa de caboclo hoje é dia de Ajucá / Duas tribos em conflito / De um romance tão bonito começou meu Ceará” (SANTOS, 2017).
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Figura 2: Iracema, no desfile da Beija-Flor. Imagem disponível em: <https://abrilexame.files.wordpress.com>

 

            A afinidade entre as histórias da literatura e do samba é bastante evidente, como exemplifica a imagem acima, a qual exalta o mito do paraíso terrestre e o exotismo da fauna e da flora brasileiras.

A idéia de pátria se vinculava estreitamente à de natureza e em parte extraía dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social. (CANDIDO, 1989, p. 141, ênfase no original)
Não apenas na ideologia e na obediência às características românticas, mas também no enredo o samba corresponde à narrativa literária, como exemplifica a comparação a seguir: “Ele sente a flecha, ela acerta o alvo / Índia na floresta, branco apaixonado” (SANTOS, 2017); “Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. […]. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido” (ALENCAR, 1941, p. 20). Na cena representada em ambas as passagens, destaca-se o perfil heróico do povo indígena, com a flecha disparada por Iracema, guerreira protetora de sua tribo. No que se refere ao convívio entre brancos e índios, o samba, assim como o romance, corresponde à fase que Paulo Prado classificou como “idílica”: “Era ainda o período idílico e heróico, em que o colono aqui chegava isolado no individualismo da época, e misturava-se com o indígena, de quem aprendia a língua e adotava os costumes” (PRADO, 1999, p. 71).
Diversidade tropicalista
A escola Paraíso do Tuiuti celebrou o Tropicalismo, movimento cultural que predominou especialmente na música, durante a década de 1960. Por dar destaque ao intercâmbio cultural, as influências dos tropicalistas eram inegáveis e remetiam ao Modernismo, com ênfase à Antropofagia: “Em lugar de embasbacamento, Oswald propunha uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade, metaforizada na deglutição do alheio: cópia sim, mas regeneradora” (SCHWARZ, 1986, p. 5). O resultado disso aparece em passagens como esta, da obra Macunaíma, de Mário de Andrade, que exalta o hibridismo:
Que mundo de bichos! Que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos […]. A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhas rindo tinham ensinado pra ele que o sagüi-açu não era sagüim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. […]. Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. (ANDRADE, 2001, p. 42)
Nessa atmosfera, de modo primordial, entrelaçam-se os conceitos de identidade e alteridade, o que Antoine Berman expõe, afirmando que “as literaturas estrangeiras tornam-se mediadoras nos conflitos internos das literaturas nacionais e lhes oferecem uma imagem delas mesmas que elas não saberiam ter” (BERMAN, 2002, p. 118).
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Figura 3: Carro alegórico da escola Paraíso do Tuiuti. Imagem disponível em: <https://ogimg.infoglobo.com.br/>

Na alegoria da imagem, são claras as referências à Psicodelia e ao Tropicalismo, movimentos que ocorreram na mesma década e por isso promoveram vários cruzamentos. A arte psicodélica, por exemplo, investia na superposição e nas formas circulares. Isso, por sua vez, combinava com o hibridismo típico da Tropicália, razão pela qual Carmem Miranda se tornou o ícone dessa tendência artística. Além da cantora, que ficou famosa por “americanizar” os clichês de brasilidade, em Hollywood, nos anos 1940, o carro alegórico traz inúmeros círculos, com estampas de Tarsila do Amaral e Beatriz Milhazes, pintora brasileira que não se influenciou apenas pela artista modernista, mas também pela Psicodelia e pelo Tropicalismo. Dessa forma, os antecedentes se entrelaçam e dialogam de modo coerente (entre si e com os versos do samba-enredo da escola): 
Ê Bahia… é lindo o movimento musical
E segue a massa pra viver essa aventura
Quanta mistura… intercâmbio cultural
E na Terra da Garoa… Tropicalista
Debochando numa boa… Salve o artista
Degustar e consumir foi a opção (CHIRRINHA, 2017)
Por fim, cabe ressaltar que o Modernismo também desencadeou o Concretismo, estética que dominou a década de 1950, no Brasil. Sendo assim, do mesmo modo que a escola Paraíso do Tuiuti mencionou a estreita sintonia dos tropicalistas baianos com os modernistas de São Paulo, o crítico Paulo Leminski também exaltou essas duas potências regionalistas, no texto intitulado Pororoca:
Me refiro à pororoca, nome que dou ao choque entre a onda paulista e a onda baiana. Paulistas: os poetas concretos. Baianos: a tropicália. Os nomes: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.
Assim como o encontro entre o rio Amazonas e o oceano Atlântico provoca uma comoção singularíssima, a ponte São Paulo-Bahia deverá nortear e desnortear os destinos da cultura brasileira nos próximos decênios.
Nessa comparação com a pororoca amazônica, os concretos paulistas exercem o papel do mar. São a abertura para o exterior.
[…]
O rio é a tropicália baiana: a excepcionalidade do menino maior, Caetano, que reduziu a alegria à sua equação elementar. Alegria = alegria. O “trobar clus” de Gilberto Gil (trobar clus = “compor fechado” era a escola dos trovadores provençais que compunham difícil, em contraposição aos que facilitavam no “trobar léu” = compor leve). […].
[…]
O influxo do novo mundo verbal e semiótico dos concretos paulistas sobre os geniais compositores baianos: o sangue e o suingue novo dos baianos nas geniais equações da paulicéia estruturada. (LEMINSKI, 2014, ênfase no original)


A divina comédia salgueirense
            Levando ao extremo o recurso da carnavalização, a escola Acadêmicos do Salgueiro apresentou, no carnaval carioca, uma releitura do clássico de Dante Alighieri, protagonizada pelos personagens mais famosos do carnaval: o pierrô e a colombina.
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Figura 4: Apresentação do tema do carnaval 2017, no site oficial da escola. Imagem disponível em: <http://www.salgueiro.com.br>

               Embora os contextos pareçam completamente opostos, convém lembrar que o par romântico teve origem na comédia italiana e, nesse aspecto, qualquer semelhança com a obra de Dante não é mera coincidência.

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Figura 5: Alegoria de Cérbero, o cão de três cabeças, guardião do Inferno. Imagem disponível em: <www.carnavalesco.com.br>

              A carnavalização, que comandou a releitura apresentada pela escola, na Sapucaí, foi um conceito bastante estudado por Mikhail Bakhtin, autor que baseou suas análises na obra de Rabelais: “Era necessário criar novas vizinhanças entre as coisas e as idéias, correspondentes à natureza delas, era preciso justapor e reunir […] e também separar o que fora falsamente reunido. Com base nessa nova vizinhança, devia surgir um novo quadro do mundo […]” (BAKHTIN, 2014, p. 284). Essa citação serve como uma espécie de tradução, que explica os processos interpretativo e criativo da equipe de arte do Salgueiro em relação ao clássico da literatura italiana. Evidentemente, a partir das “novas vizinhanças” estabelecidas, o resultado revela uma série de reacentuações, inerentes à distância temporal entre as duas “divinas comédias” (a de Dante e a do Salgueiro) e à natural exigência de atualização do tema, dos personagens e da história como um todo: “O que determina essa reacentuação das representações […]? […]. Quando o diálogo entre as linguagens de uma época se transforma, a linguagem […] começa a ressoar de outro modo, pois ela está esclarecida diferentemente, pois é percebida sobre um outro fundo dialógico” (BAKHTIN, 2014, p. 208).
            Devido ao fato de reunir inversões, a carnavalização faz parte de uma interpretação paródica, conforme Linda Hutcheon, “pois [é] uma forma de imitação caracterizada por uma inversão irónica” (HUTCHEON, 1985, p. 17); “Trata-se, com efeito, de uma forma de ‘reciclagem artística’ (Rabinowitz, 1980,241)” (HUTCHEON, 1985, p. 27, ênfase no original).
REFERÊNCIAS
ALENCAR, J. de. Iracema. São Paulo: Livraria Martins, 1941.
ANDRADE, M. Macunaíma.O herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2001.
BAHKTIN, M. Questões de literatura e de estética.7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014.
BERMAN, A. A prova do estrangeiro. São Paulo: EDUSC, 2002.
CANDIDO, A. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
CHIRRINHA, C. et al. Samba-enredo. Disponível em:
<http://www.carnavalesco.com.br/noticia/tuiuti-2017-samba-da-parceria-de-carlinhos-chirrinha/17722>. Acesso em: 3 mar. 2017.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.
LEMINSKI, P. Pororoca. Disponível em:
<http://liricoleminski.blogspot.com.br/2013/11/pororoca.html>. Acesso em: 11 nov. 2014.
PRADO, P. Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SANTOS, B. et al. A virgem dos lábios de mel – Iracema. Disponível em: <http://www.beija-flor.com.br/carnaval/samba-enredo/>. Acesso em: 28 fev. 2017.
SCHWARZ, R. Nacional por subtração. Folha de S. Paulo, 07 jun. 1986.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: verônica.kobs@fae.edu

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