Tendências artísticas e interartísticas

Verônica Daniel Kobs

Em conformidade com as vanguardas europeias, que tinham como principais metas a recusa à representação mimética tradicional e a liberdade social e estética, as tendências artísticas do Neoplasticismo e do Abstracionismo, durante as décadas de 1910 e 1920, privilegiavam as formas geométricas e o aspecto não-figurativo. Isso equivale a dizer que a relação direta da arte com o referente externo passou a ser desconsiderada. Em 1920, Malevitch retomou as principais ideias do Manifesto do suprematismo, lançado em 1915, e vinculou a estética à não-representação. Tal projeto, no entanto, já era desenvolvido há algum tempo pelo artista. Em 1913, Malevitch fez Quadrado negro sobre fundo branco e, cinco anos depois, pintou formas brancas sobre fundos brancos, intensificando o processo:
[…] os problemas formais acabam ocupando por inteiro a inteligência de Malevitch, direcionando-o cada vez mais para uma rarefação estilística, até, justamente, a solidão da tela branca — a essência da arte, extraída do invólucro das coisas representadas, assim se volatilizou. (MICHELI, 1991, p. 235)
A mudança rompeu com o padrão artístico vigente e contrariou o horizonte de expectativas do público e da crítica. A verossimilhança cedeu lugar ao simbólico. Em vez da perfeição de traços, privilegiava-se o mosaico cubista, a mescla surpreendente do Dadaísmo, as distorções expressionistas, o devaneio do Surrealismo ou a exaltação futurista ao cenário urbano, em detrimento das paisagens bucólicas. A revolução das vanguardas europeias definiu o movimento modernista e interferiu significativamente na produção literária de alguns autores brasileiros, como Oswald de Andrade, Mário de
Andrade, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.
É bem verdade que a mistura entre imagem e palavra já tinha sido experimentada, no final do século XIX, por Mallarmè. O autor francês investiu na relação da palavra com o espaço, abandonando o layout padrão dos textos literários. Essa característica resultou da intersemioticidade, pois a página do livro passou a ser tratada como tela, na qual a palavra poderia ser desmembrada e distribuída pelo espaço em branco, reforçando, na maioria das vezes, o seu significado, que deixava de ser apenas sugerido, para ser concretizado, na página. Com Un coup de dès, de 1897, Mallarmè abandonou a linearidade do verso e explorou a disposição das linhas tipográficas. Dessa distribuição inusitada e inovadora para a época, formava-se uma cadência rítmica:
                 
                    O NÚMERO
            EXISTIRIA
senão como a alucinação dispersa da agonia
     
       COMEÇARIA E CESSARIA
brotando qual negado e fechado quando surgido
                  enfim
         por alguma profusão espargida em realidade
                                           CIFRAR-SE-IA
            evidência da soma por pouco fosse uma
                             ILUMINARIA
            
                        O ACASO (MALLARMÈ, 1990, p. 125)
Relacionando duas linguagens artísticas diferentes, Mallarmè estabeleceu um discurso sincrético. A fragmentação e a descontinuidade do texto do poeta podem ser relacionadas às mesmas características, percebidas com facilidade, nesta tela, de Mondrian:
 
Victory Boogie-Woogie, 1944 by Piet Mondrian
1 – Victory boogie-woogie (1944), de Piet Mondrian. Óleo sobre tela.


Enquanto Mondrian distribui as cores puras, em traços descontínuos, obtendo, por meio da fragmentação, um todo mesclado sobre a superfície branca, Mallarmè alcança a descontinuidade pela interrupção dos versos, desalinhados e colocados em lados opostos, estratégia que interfere de modo decisivo na apreensão do sentido do texto. Além disso, deve-se enfatizar o uso de letras de tipos e tamanhos diferentes. O aspecto gráfico auxilia no destaque dado a algumas palavras, razão pela qual “acaso” é escrito apenas com letras maiúsculas.
O estilo de pintura do artista holandês destacava-se pelo aspecto não-figurativo e intrinsecamente racional. Mondrian era um dos principais colaboradores do De stijl, que se destacou no período de 1917 a 1931. O grupo valorizava o fazer artístico baseado nos princípios matemáticos, daí a ênfase à alternância de cores, de linhas e ângulos retos. O objetivo era a harmonia, através da combinação de elementos antagônicos. O resultado era a criação de uma sintaxe visual específica, na qual os elementos que compunham o conjunto associavam-se por coordenação, seguindo o mesmo princípio da Teoria da Gestalt, que, aliás, posteriormente, serviu de base à poesia concreta.
A racionalidade e o apelo à visualidade, pontos de convergência entre as artes de Mondrian e Mallarmè, são perceptíveis também em O livro, publicado em 1957 e considerado pelo escritor francês, em carta escrita a Verlaine, um projeto “arquitetônico e premeditado e, não, um apanhado de inspirações de acaso” (MALLARMÈ, 1990, p. 135). Além disso, em O livro, avultam os símbolos, numerais, traços, exponenciais e até mesmo cálculos. Nessa obra, o espaço em branco também é predominante, o que denota extrema afinidade entre os experimentos literários do poeta e as pinturas de Malevitch e Mondrian. Conforme o excerto transcrito acima, Malevitch tendia à “rarefação estilística”. Mondrian utilizava procedimento bastante parecido: “Ele retira progressivamente do objeto todas as suas notas caracterizantes, as suas particularidades, até reduzi-lo a um esqueleto, à estilização, à linha: ou seja, até fazê-lo desaparecer” (MICHELI, 1991, p. 248).
Como se vê, a hibridização que norteia a relação interartes propiciou a aproximação entre literatura e pintura, antes mesmo de o advento das vanguardas europeias servirem de modelo para a revolução modernista, no Brasil. A intersemioticidade tinha chegado para ficar. Conforme Hugo Ball: “Com a diluição das fronteiras entre as artes, o pintor voltava-se para a arte da poesia e o poeta dedicava-se à pintura” (RITCHER, 1993, p. 70). Essa troca, também chamada “blur”, propiciou e continua propiciando a ampliação das possibilidades artísticas. Testando outros instrumentos, antes de domínio exclusivo de outro tipo de arte, a literatura excedeu o limite da palavra e da escrita, porque multiplicou suas formas de expressão, a partir do momento em que incorporou a imagem e o aproveitamento do espaço, para romper com a normalidade e efetivar mudanças estéticas que acabaram por delinear a evolução do fazer literário.
REFERÊNCIAS
MALLARMÈ, S. O livro. In: GRÜNEWALD, J. L. (Org.). Stéphane Mallarmè. Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 129-133.
_____. Um lance de dados. In: GRÜNEWALD, J. L. (Org.). Stéphane Mallarmè. Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 121-128.
MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
RICHTER, H. Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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*Parte do artigo intitulado “Dadaísmo e Surrealismo: zonas fronteiriças da relação interartes”, publicado na revista Todas as Musas, ano 1, n. 2, jan.-jul. 2010.
** Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: veronica.kobs@fae.edu

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