Hamlet (quem diria?) ainda vive…(Parte 1)

Verônica Daniel Kobs

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Anualmente, no mês de abril, amantes da literatura e de outras artes costumam celebrar a importância das obras de Shakespeare, escritor inglês mundialmente conhecido, que nasceu em 26 de abril de 1564 e faleceu em 23 de abril de 1616. Portanto, há um duplo motivo para este mês ter sido batizado como “Abril de Shakespeare”. O artista excede sua época, atravessa décadas, séculos e suas histórias, quatrocentos anos depois, continuam atuais e inquietantes, para leitores novos ou antigos. As peças do bardo são constantemente reencenadas, relidas e, ano após ano, são discutidas e analisadas em eventos, livros, teses, dissertações… De fato, não poderia ser de outra forma e, para também homenagearmos a obra do autor inglês e consolidarmos sua permanência ainda hoje, publicarei, aqui, no blog Recorte lírico, duas partes de um texto sobre uma adaptação fílmica de Michael Almereyda, que confirma a atualidade do personagem shakespeariano mais famoso: Hamlet. 

A exemplo da versão cinematográfica de Romeu e Julieta, dirigida por Baz Luhrmann e protagonizada por Leonardo DiCaprio e Claire Danes, Hamlet: vingança e tragédia, de Michael Almereyda, propõe uma releitura do clássico, mantendo, entretanto, a linguagem da peça de Shakespeare. Porém, o texto, recebendo uma moldura nova, pelo diferente e atual contexto que o compreende, passa por um intenso processo de revitalização e crítica, ao mesmo tempo. O grande desafio imposto à obra de Shakespeare é passar a fazer parte de um mundo atual, o que comprova a universalidade dos temas que compõem Hamlet. Como sempre ocorre, com qualquer tipo de arte, há uma sucessão de movimentos que optam pelo resgate, para negar ou para reforçar o que veio antes. Isso pode ser relacionado à tradição, ou, em outros termos, a uma cadeia de coisas perfeitamente encadeadas e que constroem a História. Se um elo se romper, colocará em risco os que vêm depois dele, pois, se um elemento da rede é afetado, acaba por desestabilizar os outros, em menor ou maior grau.

INTRODUÇÃO

No caso de Hamlet, pode-se afirmar, ainda, que Michael Almereyda leva em conta grande parte das releituras da peça de Shakespeare que o antecederam, mas com a proposta de aliar o antigo ao contemporâneo de modo mais abrupto e consolidando, mais uma vez, a supremacia e a credibilidade da obra em questão, especificamente nesse processo de transposição do texto para a tela. Em artigo intitulado A permanência do Hamlet, Luiz Angélico da Costa faz referência à via de mão dupla que surge, pelo fato de Hamlet ser uma das peças mais retomadas, ao longo dos anos: “Hamlet, a peça, tem sido a obra shakespeariana com o maior número de leituras através destes quatro séculos de sua existência. Freud e Lacan, entre outros, fizeram as suas também. […]. Mais do que as peças que lhe deram origem, o Hamlet de Shakespeare mantém-se como um convite a novas interpretações e traduções […]” (COSTA, 2008).

Claus Clüver, adotando a terminologia de Leo Hock, diferencia “transposição” de “tradução”, por avaliar que a tradução garante maior autonomia e liberdade do texto recriado em relação ao texto-base ou original, como comprova o trecho a seguir: “[…] Leo H. Hock […] propôs, numa extensão do termo de Jakobson, chamar um texto que se aproxima do texto-fonte de ‘traduction intersémiotique’, como um caso especial de ‘transposition intersémiotique’ que normalmente abrange itens mais ‘autônomos’”  (CLÜVER, 1997, p. 42-3, ênfase no original). Mais adiante, o autor completa: “Ler um texto como tradução de outro texto envolve uma exploração de substituições e semiequivalências, de possibilidades e limitações. No caso de traduções intersemióticas, alguns leitores fascinam-se com as soluções encontradas, enquanto outros podem ver nisso a melhor demonstração das diferenças essenciais entre os vários sistemas de signos” (CLÜVER, 1997, p. 43).

Na contemporaneidade, principalmente, a diferença é que assinala a riqueza de uma obra. Em vez da similaridade, ressalta-se a alteridade, formando-se, com todas as releituras de Hamlet feitas até então, um conjunto com diferentes nuances e que oferecem um novo modo de olhar a obra de Shakespeare, que parece, por isso, inesgotável. Isso se dá, claro, pela distância temporal e pelo processo de “transculturação”, também mencionado por Clüver. Somem-se a isso as diferenças impressas, nos produtos das inúmeras releituras, pelos instrumentos próprios, às vezes exclusivos de cada sistema sígnico, afinal, para fazer um filme, a partir de uma peça teatral, é necessário investir em outros recursos, o que acaba por desacelerar, e muito, a preocupação com a linguagem e a gestualidade, principais matérias–primas do texto e do espetáculo teatral.

Em um dos muitos significados que Patrice Pavis oferece para o termo “adaptação”, o autor ressalta o fato de, hoje, o critério de fidelidade não mais imperar nesse processo, sobrando mais espaço à recriação, afinal, “a transferência das formas de um gênero para outro nunca é inocente” (PAVIS, 1999, p. 11). No que se refere à junção entre o antigo e o novo, Pavis menciona que a adaptação é uma “tradução que adapta o texto de partida ao novo contexto de sua recepção com as supressões e acréscimos julgados necessários à sua reavaliação” (PAVIS, 1999, p. 11). Fechando o raciocínio, se há “supressões e acréscimos”, há crítica e “produção do sentido”, com total impossibilidade de uma releitura “inocente”. 

“SER OU NÃO SER”

Em Hamlet: vingança e tragédia, o diretor, usando a liberdade para reavaliar o clássico, em sua releitura, mantém a obrigação do protagonista de vingar a morte do pai. No entanto, longe de ser uma opção, já que é justamente a necessidade de vingança que dá início aos conflitos vividos por Hamlet, isso não serviria de instrumento para o “julgamento” do clássico. Por isso, coerente com a modernidade, o diretor investe nas relações interpessoais, potencializando o solilóquio mais importante da peça, em que Hamlet reflete sobre a existência, e relacionando-o a outras partes de fundo filosófico, para consolidar o conflito que sustenta a tragédia.

Já no início do filme, Hamlet aparece, em imagens em preto e branco, com um copo na mão. Por vezes, seu rosto é visto através do copo, o que o distorce. Isso, além da embriaguez sugerida, serve de reforço ao estado de espírito conturbado do personagem, que, nessa cena, declama fragmentos que correspondem a esta transcrição, da tradução feita por Anna Amélia Carneiro de Mendonça: “Ultimamente — não sei por que — perdi toda a alegria, […]. Que obra de arte é o homem! Como é nobre a razão! Como é infinito em faculdades! Na forma e no movimento como é expressivo e admirável! Na ação, é como um anjo! Em inteligência é como um Deus! A beleza do mundo! O paradigma dos animais! E, no entanto, para mim, o que é essa quintessência do pó?” (SHAKESPEARE, 1995, p. 75-6, II, ii). A inversão em relação ao texto original, já que o trecho transcrito abre o filme, tem o intuito de mostrar o impacto da morte do pai sobre Hamlet, que parece mergulhado em um clima de desesperança e de completa inanição. Quando a câmera se afasta e o plano se abre, o espectador percebe que a cena que acabou de ver é um filme que Hamlet fez e está revendo em seu computador, o que é apenas uma das aberturas à metalinguagem no filme, exacerbando por completo o recurso usado por Shakespeare, quando Hamlet mostra a seu tio, através da peça dentro da peça, que já sabe de tudo. 

Hamlet (quem diria?) ainda vive...(Parte 1)

Desde o início, porém, o conflito existencial, que atingirá tanto a esfera ética quanto a moral, é estabelecido pelo diretor. A razão disso, em se tratando de uma tragédia, é assim apresentada por Bárbara Heliodora: “[…] a trama tem de retratar a parte perturbada da vida do herói que precede e conduz à sua morte, pois nenhuma morte repentina ou acidental em meio à prosperidade seria suficiente para o gênero. A tragédia é, essencialmente, um relato de sofrimento e calamidade que conduz à morte” (HELIODORA, 2004, p. 126).

Em Hamlet: vingança e tragédia, a brincadeira metalingüística ganha continuidade com uma das partes mais interessantes e surpreendentes do filme. O solilóquio mais importante e conhecido do texto original é declamado por Hamlet dentro de uma videolocadora, em meio a vários filmes. Claro que nada que aparece na tela é aleatório. Hamlet caminha por um corredor, ladeado por fitas de vídeo dispostas em prateleiras que têm a placa action. A cada passo que ele dá, enquanto fala, as placas de actionvão se seguindo uma a outra, como se anunciassem uma espécie de clímax. Ao fundo desse corredor, três televisores exibem cenas de explosão e de dois inimigos que lutam. Bem ao fundo, passando quase despercebida, há uma placa colorida com a frase Go home happy, uma brincadeira, em tom extremamente jocoso e parodístico, em relação ao que Hamlet estava vivendo. Continuando a cena, Hamlet continua declamando seu solilóquio, mas agora cercado por inúmeras fitas de vídeo com a inscrição blockbuster, o que pode ser interpretado de modo ambíguo, pois o “grande sucesso” pode tanto remeter ao clássico quanto ao pop, dualidade que traduz o filme de Almereyda, que prima pela combinação do atual com o antigo. Terminando sua fala, Hamlet volta pelo mesmo corredor das placas que anunciam action e mais action. Nos televisores, ao fundo, há, agora, a imagem de um dos lutadores, em meio a chamas.

Em outra parte do filme, bem antes do solilóquio que opõe “ser” e “não ser”, o mesmo tipo de conflito ganha destaque. A cena introduz o conceito de “inter-ser” (HAMLET, 2000) e é uma criação do diretor, que dialoga com a obra de Shakespeare, além de inseri-la no panorama da modernidade, definido pela dependência existente entre o sujeito e a sociedade. Segundo Stuart Hall, a noção de sujeito sociológico reagiu à do sujeito Iluminista, regido pelo individualismo: “De acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (HALL, 2001, p. 11).

Na esteira do sujeito sociológico, portanto, Almereyda inclui, no filme, o trecho de um programa de tevê a que Hamlet assiste e no qual o entrevistado, adepto da seita budista, explica:

Temos a palavra “ser”, mas eu proponho a palavra “inter-ser”. “Inter-ser”, porque ninguém pode ser sozinho, estando sozinho. Você precisa de outras pessoas para ser. Precisa de outros seres para ser. Precisa de pai, mãe e de tio, irmão, irmã, amizades. E também de sol, rio, ar, árvores, pássaros, elefantes, etc. Logo, é impossível ser, estando sozinho. Você precisa “inter-ser” com tudo e todos. Portanto, “ser” significa “inter-ser”. (HAMLET, 2000)

Essa passagem revela-se de suma importância, quando associado ao conteúdo da peça e do filme, porque expõe, para o protagonista, a necessidade de ele entender a morte do pai como um problema seu, não por causa do parentesco, apenas, mas também pela sua responsabilidade com todo o reino. Apenas enfrentando seu tio e sua mãe, de modo a investigar as suspeitas levantadas pelo espectro de seu pai, ele podia corrigir o que estava errado. Desse modo, “ser” ou “inter-ser”, em vez da simples opção por “não ser”, ou pelo “[…] repouso/ Na ponta de um punhal […]” (SHAKESPEARE, 1995, p. 89, III, i), significava assumir a herança, bem como a responsabilidade e os riscos que vinham com ela.

Aproveitando a relação entre “ser” e “inter-ser” incluída na adaptação de Hamlet para o cinema, observe-se que Joseph Campbell, em seus estudos, que comumente associam psicologia e mitologia, faz menção à família como se essa fosse uma arena de conflitos. Além disso, fica explícito o vínculo entre o conceito de usurpação e uma passagem da obra O herói de mil faces: “O campo de batalha simboliza o campo da vida, no qual toda criatura vive da morte da outra” (CAMPBELL, 1997, p. 231-2). Importante ainda é notar a intensidade dos conflitos ente pai, mãe e filho. Flügel, referência usada por Campbell freqüentemente, afirma que a figura do pai é associada à alma, enquanto a da mãe, ao corpo ou à matéria, o que se revela de extrema relevância em Hamlet, porque o fato de o espectro do pai aparecer para o filho, clamando por vingança, reforça a sintonia existente ente os dois, já que, por mais que o filho, inicialmente, encare o progenitor como um rival, acaba igualando-se a ele. Esse aparente conflito, que deve ser transmutado, depois, em continuidade, é caracterizado da seguinte forma, por Flora Süssekind:

Vampirescamente o membro mais jovem deve revigorar toda a árvore. Quando se recusa a buscar a bênção familiar, quando ao invés da hereditariedade percebem-se diferenças, é o pai quem se torna repentinamente “estéril”. […]. Quando “filho” se torna sinônimo de “diferença”, de “descontinuidade”, percebe-se que, por maior que tenha sido a árvore onde se inscreve o nosso corpo, resta apenas um “duplo traço” cortando todos os ramos seguintes ao nosso.” (SÜSSEKIND, 1984, p. 24-5, ênfase no original)

A partir do que foi exposto acima, em Hamlet, o pai, ao voltar como fantasma, exige que o filho o “substitua”, pedindo a aniquilação das diferenças, em favor da continuidade, concretizando a afirmação de Flügel. Tal postura obriga Hamlet a apresentar, de modo mais marcado, seu perfil contemplativo e reflexivo em relação a tudo e a todos, por meio do contato com o sobrenatural. Campbell chega a comparar Hamlet a Édipo, afirmando que ambos buscam, “nas trevas, um reino mais elevado que o da mãe luxuriosa e incorrigível, afetada pelo incesto e pelo adultério” (CAMPBELL, 1997, p. 122). No caso de Édipo-rei não, mas, em se tratando de Hamlet, a busca por “um reino mais elevado” pode, ainda, ser associada à condição de fellow do protagonista, a qual, por sua vez, possibilita o engrandecimento do conflito instituído pela missão recebida pelo fantasma do pai: “O fantasma talvez seja um demônio,/ Pois o demônio assume aspectos vários/ […] preciso/ Encontrar provas menos duvidosas” (SHAKESPEARE, 1995, p. 85, II, ii).

No início, o dilema é apenas ético, mas, aos poucos, atinge a esfera moral: “Eu nem sei por que vivo e apenas digo/ ‘Isso deve ser feito’, pois não faltam/ Razões, vontade e força e os próprios meios/ Para fazê-lo […]./ De ora avante, terei ódio sangrento,/ Ou nada valerá meu pensamento” (SHAKESPEARE, 1995, pp. 128-9, IV, iv). E é justamente nessa parte que Hamlet decide levar sua vingança adiante, optando por “ser”, ou seja, por assumir o legado que lhe cabia e reestabelecer a ordem, em sua família e em seu reino, afinal, o ato de Claudius tinha repercutido enormemente. A expiação era uma exigência e o instrumento era Hamlet. 

REFERÊNCIAS BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. I. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997. CLÜVER, C. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e sociedade 2: revista de teoria literária e literatura comparada. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. COSTA, L. A. da. A permanência do Hamlet. Disponível em: http://www.iupe.org.br/ass/resenhas/res-040723-hamlet.htm. Acesso em: 02 set. 2007. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2001. HAMLET: vingança e tragédia. Direção de Michael Almereyda. EUA: Jason Blum, Andrew Fierberg, Callum Greene, Amy Hobby e John Sloss; Imagem Filmes, 2000. 1 dvd (112 min); son.; 12 mm. HELIODORA, B. Reflexões Shakespearianas. Rio de Janeiro: Lacerda, 2004. PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. SHAKESPEARE, W. Hamlet. Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. SÜSSEKIND, F. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.

Parte do artigo intitulado “Um estudo sobre Hamlet: morte — causa e consequência”, publicado na revista Scripta Uniandrade, n. 7, 2009. A segunda parte do texto será publicada em breve, no blog Recorte lírico.


Leia também a parte 2: Hamlet (quem diria?) ainda vive… (Parte 2)

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