A mulher-maravilha do novo século

Verônica Daniel Kobs

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(Atenção: alerta de spoilers.) 

O último mês foi marcado pela estreia do filme Mulher-maravilha (EUA, 2017), de Patty Jenkins, com Gal Gadot e Chris Pine nos papéis principais. O longa arrasou nas bilheterias do mundo todo. Lançado no mesmo período do novo filme da série A múmia, a expectativa era que Tom Cruise superasse facilmente Gal Gadot, o que não ocorreu. Nos Estados Unidos, no fim de semana de 23 a 25 de junho, Mulher-maravilha conquistou o 3o lugar no ranking, tendo arrecadado $ 25,175, o quíntuplo do valor obtido por A múmia, no mesmo período (OMELETE, 2017). De fato, a nova história da heroína amazona, personagem criada em 1941, por William M. Marston, surpreende tanto pela produção quanto pelos temas que compõem a história.

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Mulher-maravilha na década de 1940. (Imagem: Editora Abril)

A história cinematográfica de Diana Prince e Steve Trevor tem início na ilha de Temiscira, para explicar a infância de Diana, sua missão contra o deus Ares e para mostrar o encontro do casal protagonista. São muitos os pontos comuns entre o filme e a HQ. Na capa reproduzida acima (Fig. 1), a heroína luta contra três homens armados, usando seus poderosos braceletes. Na adaptação fílmica, essa característica define Diana, que vai para a frente de batalha, em plena Primeira Guerra Mundial. É evidente que a personagem, tendo sido criada durante a Segunda Guerra, é inserida em outro cenário bélico, anterior àquele que lhe originou. Apesar disso, que, aliás, constitui uma alteração própria a qualquer adaptação, sua função e seu perfil mantêm-se coerentes com a história da personagem. Outro ponto bastante respeitado na versão cinematográfica refere-se à chegada de Steve na ilha das amazonas, a exemplo do que ocorreu na HQ:

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O avião de Steve cai na ilha de Temiscira. (Imagem: Plano Crítico)

Outras qualidades do longa vão aparecendo, à medida em que a história se desenrola. Nas cenas de luta, o ritmo, os close-ups e o enquadramento têm grande importância, pois mostram a coreografia da batalha em detalhes, além de a ação ser desacelerada em alguns momentos, enfatizando ainda mais o tom descritivo. No enquadramento, verifica-se a tentativa de aproximar as cenas do filme às da HQ, já que, nessa mídia específica, o modo de enquadrar ações e personagens equivale às noções de perspectiva e proximidade provocadas pelo uso da câmera, no cinema.

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Diana, no filme, em combate de guerra. (Imagem: Otakupt)

A principal vilã, Doutora Veneno, arquiinimiga da Mulher-maravilha, também não é inventada; ela é resgatada da HQ e adaptada para a grande tela. Porém, a diretora não faz referências apenas ao mundo da heroína do universo DC. Seus companheiros e também a formação da Liga da Justiça integram a história, dando espaço à intratextualidade, no que se refere às produções da DC, tanto nas HQs como nos filmes lançados pela marca, nos dois últimos anos, com ênfase especial ao longa Batman vs. Superman (EUA, 2016). Aliás, ressalte-se que, em 2014, a DC iniciou, no Brasil e nos EUA, um projeto massivo de retomada de marca, intitulado DC Universe Rebirth. Entre as ações previstas para o resgate de histórias e personagens, estão os lançamentos: de Batman vs. Superman, Esquadrão suicida e Mulher-maravilha, nos cinemas; e de Supergirl, Arrow, Flash, Legends of tomorrow e Gotham, na TV, sendo que todas as séries são exibidas  no Brasil, pela Warner.

Em se tratando da evolução da personagem Mulher-maravilha, ao longo das décadas, pode-se afirmar que o filme tenta corresponder às diversas fases da heroína. O primeiro exemplo disso é o figurino de batalha. Depois de ter deixado a terra das amazonas, Diana usa uma saia muito curta, contrariando o short justo e cavado que eternizou a personagem de Lynda Carter e homenageando o desenho original, tal como mostra a Figura 1, na qual a super-heroína aparece com uma saia mais longa. Da fase de 1970, quando Diana perde seus poderes, na HQ, a protagonista do filme mantém o perfil filosófico, pois, no longa, ela reflete bastante sobre o mundo dos homens, a vulnerabilidade e a oposição do bem contra o mal. Em 1980, a personagem passou por alteração significativa, na parte física, na HQ. Em conformidade com o culto ao corpo, Diana ganhou um perfil mais musculoso. Esse critério com certeza foi determinante para a escolha de Gal Gadot como atriz principal do filme. Já no século XXI, a heroína inovou no figurino e ganhou uma armadura, para combinar com o escudo e a espada, acessórios que foram inseridos em 1980, mais de 40 anos depois dos originais (o laço da verdade e os braceletes). Esse detalhe foi levado em conta pela produção do filme, como pode ser constatado pela comparação das imagens abaixo:

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Mulher-maravilha em 2016, no Renascimento do Universo DC (à esq.) (RUCKA, 2016); e em 2017, no filme (à dir.). (Imagem: Adoro Cinema)

No que diz respeito à diversidade e à relação interartes, características muito valorizadas atualmente, o filme também desempenha seu papel. Steve e Diana formam um pequeno exército, com um índio, um loiro (típico europeu) e um árabe entre os combatentes. Na associação entre as artes, somando-se às tentativas do filme de respeitar enredo e recursos utilizados anteriormente, nas HQs, os créditos finais têm função fundamental, porque misturam técnicas comuns às principais artes pictóricas: HQ, cartum, cinema e pintura. Além disso, na parte da história que se passa em Londres, os figurinos de Diana e Steve remetem aos estilos de personagens icônicos das HQs: Carmen Sandiego e Dick Tracy.

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Diana e Steve, em Londres, no filme (à esq.); Carmen Sandiego (ao centro); e Dick Tracy (à dir.) Imagens disponíveis em: Apaixonados por séries, American profile e Adoro cinema.

Entretanto, alguns espectadores associaram o figurino do casal, em Londres, aos filmes do Superman e à série veiculada na TV, em 1975, na qual Lynda Carter usava óculos e roupas muito similares às usadas pela personagem de Gal Gadot.

No filme de Patty Jenkins, as cenas de ação têm uma duração adequada ao longo de toda a história, sem excessos. Isso auxilia o enredo, pois evita a diluição dos conflitos que permitem o desenvolvimento e a progressividade dos acontecimentos. Contudo, apenas por um defeito o filme desagrada: o destino de Steve, que perpetua o mito sacrificial comum aos norte-americanos, adensando o perfil de salvadores que os representa na maioria dos longas hollywoodianos.

Por fim, chegamos à característica mais importante do filme, a qual justifica o “renascimento” da Mulher-maravilha, em pleno século XXI. Trata-se do empoderamento, assunto atual e que orienta toda a trajetória de Diana, que passa por vários estágios, respectivamente: “power within”, “power over” e “power to” (MOSEDALE, 2016), demonstrando que “empowerment is an ongoing process rather than a product” (MOSEDALE, 2016). Por meio de autoconfiança e autoestima, a personagem se sobrepõe à vontade da mãe, de Steve e dos demais companheiros, para assumir o comando de seu destino e da guerra, ajudando a salvar muitas vidas. “People are empowered, or disempowered, relative to others or, importantly, relative to themselves at a previous time” (MOSEDALE, 2016). Dessa forma, a personagem faz com que as mudanças individuais tenham um efeito coletivo.

Com relação a esse tema, é evidente que a origem de Diana já diz muito. Filha de Hipólita e sobrinha de Antíope, ela cresceu na ilha das amazonas. Essa condição pode ser facilmente associada ao empoderamento feminino. Com base em Bachofen, Junito Brandão menciona o amazonismo como a “segunda etapa da ginecocracia”, definida como “o poder” ou “o governo da mulher” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 231). Em razão disso, conforme o mito, acreditava-se que as amazonas “mutilavam o seio direito para que pudessem manejar com mais destreza o arco” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 231). Os objetivos eram bem claros: “[…] combater como um homem em sua luta com o masculino pela independência” e “fortalecer a Grande deusa da matrilinhagem” (BRANDÃO, 2000, v. II, p. 232).

Entretanto, a base mitológica de Diana é usada, no filme, respeitando as alterações que já tinham sido feitas pela HQ. Na história original, há referência ao fato de Hipólita ter feito Diana a partir do barro e é exatamente isso que a mãe conta à filha, no filme de Jenkins. Isso é bastante coerente com a matrilinhagem que predominava entre as amazonas. Contudo, o detalhe não condiz com o mito grego, segundo o qual Diana é o nome latino correspondente à deusa Atená, “nascida sem mãe, das meninges do deus [Zeus]” (BRANDÃO, 2000, v. I, p. 136). Em contrapartida, no que diz respeito à oposição entre Diana e Ares, filme e HQ estão em conformidade extrema com o mito. Com relação a isso, Junito Brandão cita o canto VIII da Ilíada, de Homero, no qual Ares é ferido por Atená (Diana) e reclama a Zeus sobre o ataque sofrido: “Todos nós estamos revoltados contra ti. Geraste uma louca / execrável, que só medita atrocidades. […]”(BRANDÃO, 2000, v. I, p. 136, grifo no original).

A partir desses pressupostos, percebe-se que o empoderamento feminino é representado, no filme, em dois momentos principais: no início, quando Steve descobre ser o único homem entre as amazonas da ilha; e em Londres, quando Diana é subestimada pelos homens, nas ruas, nos pubs, nos conselhos militares e depois, na frente de batalha. Apesar disso, a protagonista expressa sua autoconfiança a todo momento. Em uma cena, Steve diz a Diana que não acredita existir um homem capaz de derrotar Ares, o deus da guerra, ao que ela responde: “Eu sou o homem que pode” (MULHER-MARAVILHA, 2017). Esse comportamento de Diana está totalmente voltado à origem dela e à ideologia das amazonas e se reflete também em outros momentos da história, como na sequência em que a personagem tenta escolher uma roupa mais adequada à tradicional e austera sociedade europeia. Observando os modelos disponíveis, Diana se surpreende com a saia justa e com o espartilho, perguntando: “O que as mulheres usam nas batalhas?” (MULHER-MARAVILHA, 2017). Com o resgate dessa fala, chegamos ao ápice da representação do empoderamento feminino, no longa: a atuação de Diana no campo de batalha. Conforme observado anteriormente, a adaptação fílmica usou como pano de fundo a Primeira Guerra Mundial, em vez da Segunda. Porém, a alteração não impediu que a diretora tentasse representar a realidade das mulheres na Segunda Guerra, em uma homenagem dupla: à importância das mulheres, nesse período fundamental da história mundial, e à origem da personagem, criada em 1941, em meio ao conflito bélico.

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Cena do filme que mostra Diana, em plena guerra, com Steve e o resto do grupo. (Imagem: Plano crítico)

A cena acima associa-se, então, à participação ativa das mulheres, durante a Segunda Guerra Mundial, quando trabalharam “em setores auxiliares, de serviços públicos; como mecânicas, operárias e até mesmo em construções de navios e aviões” (MELLO, 2012). Inclusive, as russas chegaram a servir o exército: “[…] mais de oitocentas mil russas serviam nos exércitos de Stalin. […]. Algumas mulheres serviram como atiradoras […] e, em 1943, um grande número delas concluiu cursos como atiradoras de elite” (HASTINGS, 2012, p. 373). Cite-se, ainda, o depoimento de um membro do exército vermelho russo, o comandante Vasily Grossman, que assim resumiu a Hastings o papel da mulher em tempos de guerra:

Elas dirigem tratores, cuidam de armazéns, entram em filas para beber vodca. Moças um pouco bêbadas cantam lá fora – despedem-se de uma amiga que servira o exército. As mulheres carregam nos ombros o grande fardo do trabalho. As mulheres dominam. Agora, elas nos alimentam e nos amam. Nós combatemos. E não combatemos bem. (HASTINGS, 2012, p. 374) 

A citação encaixa-se perfeitamente no perfil da personagem, no filme. Diana vai à guerra e obriga que os homens lutem e avancem na batalha, conquistando algo que eles esperavam há meses. Se, recentemente, a questão que orientou a história do filme e definiu o resgate da Mulher-maravilha foi o empoderamento, vale lembrar que, no final da década de 1970, o Brasil teve sua versão própria da heroína, chamada de Maria Maravilha. A personagem era representada pela atriz Betty Faria, no programa Brasil pandeiro, veiculado na Globo, em 1978, e que se caracterizava pela mistura de música e comédia. Maria Maravilhava era uma resposta à onda feminista da época. Ela não chegou a lutar em plena guerra, porque o contexto nem permitia isso, mas ela enfrentava filas imensas, sob o sol escaldante e se equilibrando e no salto de sua bota dourada, para sobreviver e garantir o sustento da família.

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Maria Maravilha em cena de Brasil pandeiro (1978), no momento da transformação de mulher comum em super-heroína. (Imagem disponível em:<http://s01.video.glbimg.com/x240/3645476.jpg>)

De 1941 a 2017, as transformações foram muitas, sempre com o propósito de atender ao contexto e às exigências do público, que abrange várias gerações. Esse vasto período e a legião de fãs que a personagem conquistou, em mais de 70 anos, revelam um dado importante: a permanência da super-heroína, que se reinventa e ressurge, de tempos em tempos. Vida longa à Mulher-maravilha.

REFERÊNCIAS:

BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vols. I e II.  Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

HASTINGS, M. Inferno: o mundo em guerra 1939-1945. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.

MELLO, A. As mulheres na Segunda Guerra Mundial: uma breve análise sobre as combatentes soviéticas. Disponível em: <http://www.historiamilitar.com.br/artigo5rbhm9.pdfl>. Acesso em: 24 jul. 2015.

MOSEDALE, S. Policy arena. Assessing women’s empowerment: Towards a conceptual framework. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/261727075_Mosedale_Assessing_women’s_empower

ment>. Acesso em: 10 out. 2016.

MULHER-MARAVILHA. Direção de Patty Jenkins. EUA: Warner Bros., DC Entertainment, Atlas Entertainment e Cruel & Unusual Films; Warner Bros., 2017. 1 DVD (141 min); son.; 12 mm.

OMELETE. Bilheteria USA. Disponível em: <https://omelete.uol.com.br/bilheteria-usa/>. Acesso em: 26 jun. 2017.

RUCKA, G. Mulher-maravilha, n. 1, ago. 2016. (Série Universo DC Renasce).

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