Poemas inéditos de Pablo Neruda: A obra póstuma de um poeta eterno

Verônica Daniel Kobs

Poemas inéditos de Pablo Neruda: A obra póstuma de um poeta eterno 3

Em dezembro de 2014, durante uma viagem ao Chile, havia uma lista de coisas para fazer, ver, conhecer e algumas poucas para comprar. Sem dúvida, em Santiago, a primeira visita foi à “casa azul”, La Chascona, onde Pablo Neruda morou com Matilde Urrutia, e o que abria minha lista de compras era o livro de poemas inéditos do poeta chileno, para que eu pudesse adquirir os textos, recém-lançados (pois a publicação estava prevista para aquele mês), escritos em língua espanhola, e não em uma versão já traduzida para o português.

Poemas inéditos de Pablo Neruda: A obra póstuma de um poeta eterno

A expressão “La Chascona” significa “A despenteada” e é uma alusão aos cabelos de Matilde Urrutia, amante que se tornou esposa de Pablo Neruda e para quem o poeta construiu a “casa azul”, aos pés do Cerro San Cristóbal, no bairro Bellavista, de vida diurna e principalmente noturna. Uma atração imperdível para os turistas que visitam Santiago. O bairro é muito claro, colorido e vibrante (o que em muito faz lembrar a vivacidade de Valparaíso, onde Pablo Neruda também passou boa parte de sua vida). La Chascona fica bem ao final dele, em uma região tranquila e com menos movimento de carro e pessoas. A casa-museu é cheia de ambientes, dispostos em patamares distintos, formando uma linha longa e sinuosa, que sobe, acompanhando a encosta do morro. A construção é baixa, as portas são estreitas e algumas peças são pequenas, proporcionalmente inversas ao imenso aconchego e à caprichosa organização de cada objeto. Tudo parece milimetricamente disposto sobre mesas, balcões, estantes e escrivaninhas. O cheiro das coisas foi algo que gravei em minha memória e o que me fez perceber o imenso prazer de estar ali, por alguns momentos apenas.

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Ao final da visita, passávamos por uma pequena loja, com livros, cartões-postais e outros suvenires. Entretanto, não encontrei lá o livro que buscava, com os poemas inéditos. Não achei lá, nem em qualquer outra livraria de Santiago (nem mesmo no aeroporto). Consegui a obra apenas duas semanas depois, em Buenos Aires, na majestosa livraria El Ateneo da rua Santa Fé.  O livro é composto de 21 poemas inéditos, descobertos apenas a partir de junho de 2011, quando “la Fundación Pablo Neruda inició la tarea de elaborar un catálogo lo más completo posible de los originales manuscritos y mecanoscritos de la obra de Pablo Neruda, […]. Este trabajo implico la revisión de cada papel, y en el camino fueron apareciendo sorpresas” (NERUDA, 2014, p. 7-8). “Para a Seix Barral, a certificação da autoria desses mais de vinte poemas ‘os converte na maior descoberta das letras hispânicas nos últimos anos, um acontecimento literário de importância universal’” (VERMELHO, 2014). A publicação também traz 5 fac-símiles e, ao final, uma nota explicativa para cada um dos 21 textos. Desse modo, a leitura desencadeia um tríplice processo. Inicia-se pela leitura do texto mecanografado, depois se analisa a versão em fac-símile (quando há) e por último verifica-se a nota que traz considerações sobre o poema lido.

O tempo foi extremamente caprichoso ao esconder, e depois revelar, após quase quatro décadas, textos tão variados e representantes de diferentes fases do escritor chileno. Aliás, as artimanhas do tempo também renderam coincidências, já que, em 2014, foram comemorados o 110º aniversário de nascimento do poeta e “o 90º aniversário da publicação de ‘Vinte poemas de amor e uma canção desesperada’” (VERMELHO, 2014).

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Na obra inédita, há um pouco de tudo: amor, natureza, política, metalinguagem e nacionalismo. O poema A los Andes sintetiza de modo exemplar as características plurais e peculiares da obra de Pablo Neruda. Nele, a natureza se faz esplêndida e imponente, por meio da imagem da Cordilheira dos Andes, paisagem representativa não apenas do Chile, mas de toda a América do Sul. Em meio ao texto, o eu-lírico criado pelo poeta, em versos curtos, de excepcional teor imagético, exalta não apenas a paisagem e a natureza. Ele também assinala o patriotismo e a história de luta do povo chileno: “Cordilleras / nevadas, / Andes / blancos, / paredes / de mi patria, / cuánto / silencio, / rodea / la voluntad, las luchas / de mi pueblo” (NERUDA, 2014, p. 57). O texto é longo, com dezenas de versos, que ocupam quase cinco páginas. O ritmo é cadenciado e os versos, mínimos, funcionam como flashes. Com poucas palavras, eles exigem lentidão e uma pausa maior do que aquela que se faz normalmente, ao final de cada verso, obrigando o leitor a observar a paisagem aos poucos, detendo-se sobre cada detalhe, como se ela estivesse ali, à sua frente. O mesmo artifício é usado no poema 6, sem título: “una / rama / en flor / como / aquel / día / florido” (NERUDA, 2014, p. 32). Entre poemas de versos curtos e longos, ora encadeados, ora “harmônicos” (ao gosto de Mário de Andrade), de temas simples ou complexos, de amor (seja de felicidade ou de lamento), ou de guerras, que simbolizam mortes, mas também conquistas, o livro mais recente de Pablo Neruda é completo e variado, por unir os contrários próprios das antíteses.

Entretanto, a inexplicável sensação dos fãs do poeta, que parece reunir fascinação e respeito, diante dos textos recém-descobertos, é obscurecida por outra antítese, representada por falhas na organização do livro. O primeiro problema aparece ainda no Prólogo, quando Pere Gimferrer, analisando alguns versos de Neruda (“los pétalos que forman tu forma”, “árbol sombrío que canta en la sombra” e “y de pronto en la sombra más sombría” (NERUDA, 2014, p. 12)), menciona: “El outro obstáculo se refiere a ciertas aparentes redundancias, que no pueden serlo en un poeta con tantos recursos como Neruda” (NERUDA, 2014, p. 12). O crítico analisa a repetição como um problema, que contamina e prejudica os versos do poeta. Gimferrer apenas aceita o recurso como válido, porque diz tê-lo encontrado também em outros autores da língua espanhola e encerra a questão definindo a repetição como algo “que estaba en el espíritu de la época” (NERUDA, 2014, p. 12). É muito mais do que isso. Trata-se de uma figura de construção, que interfere positivamente no poema, reforçando ideias e provocando um entrelaçamento com o aspecto sonoro, já que as letras e os sons também se repetem.

Outro defeito do livro é o número insuficiente de fac-símiles. Pouquíssimos textos podem ser vistos em sua versão original. Além disso, há notas, como a do texto 3, que contam detalhes da versão manuscrita, mas sem mostrá-la, aumentando a insatisfação do leitor, por não ter acesso àquele material. Em outros casos, como ocorre na nota do poema 5, o crítico, Darío Oses, apenas repete detalhes que estão visíveis no fac-símile, algo que contradiz por completo o caráter analítico das Notas. Aliás, essa é a parte que mais decepciona em todo o livro. Oses “copia e cola” expressões, e até períodos inteiros, os quais se repetem 4 e 6 vezes, nas Notas. É certo que os textos explicativos de Oses trazem informações relevantes com relação aos poemas de Neruda, entretanto, nesse quesito, o livro merecia mais cuidado. Para eliminar as repetições literais (que, ao contrário do pleonasmo usado pelo poeta, não podem passar por figuras de som ou de construção), talvez fosse mais adequado um posfácio, em texto contínuo, no qual o crítico mencionasse as particularidades de cada poema e, por uma única vez, as coincidências entre eles. Nesse aspecto, os fãs do poeta chileno, que esperaram ansiosamente, para compartilhar da grande descoberta literária, mereciam mais. Pablo Neruda, ganhador de um Prêmio Nobel, também merecia mais.

 

REFERÊNCIAS

NERUDA, P. Tus pies toco en la sombra y otros poemas inéditos. 1. ed. Edición, introducción y notas de Darío Oses e Prólogo de Pere Gimferrer. Buenos Aires: Seix Barral, 2014, 128 p.

VERMELHO. Mais de 20 poemas inéditos de Pablo Neruda são encontrados em arquivos. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br/noticia/244597-7>. Acesso em: 23 set. 2014.

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