[Conto] O CDF

Farrel Kautely

O CDF

Durante o ano em que estudei na escola Dr. Vitor Cordilheiro dos Santos eu tinha um amigo… bem, na verdade acho que seria melhor dizer que eu tinha um colega chamado Gustavo. Colega porque não éramos íntimos o suficiente para firmar amizade. E para falar a verdade, acho que Gustavo não tinha muitos amigos.

 

Ele era inteligente. Costumávamos, meus amigos e eu, dizer que ele ficaria doido de tanto estudar e com o pescoço torto de tanto ler. Sempre que o víamos ele estava lendo um livro. Ele comia no refeitório, andava pelos corredores da escola e pelas calçadas das ruas com seu pescoço curvado, lendo revistinhas em quadrinho de heróis, livros que todos nós achávamos um absurdo os professores de português nos mandar ler ou recitando baixinho poesias de livrinhos engraçados. Andava assim pelos cantos, totalmente distraído, de vez em quando tropeçando ou esbarrando em obstáculo que surgiam. Mas no geral desviava de todos eles, e não era fácil chamar sua atenção enquanto lia. Sempre que precisávamos falar alguma coisa com ele, tínhamos de chamá-lo várias vezes.

Mas isso não era o que o fazia ter poucos amigos. O que o afastava do restante da galera era sua mania de dar palpite e sugerir soluções e jeitos melhores de fazer as coisas para tudo. Qualquer assunto discutido diante dele perdia a graça quando ele resolvia argumentar. Não que ele estivesse errado (pelo contrário, aparentemente ele estava sempre certo), mas pelos outros sentirem-se intimidados e incapazes de falar o que tinham para dizer. Afinal, diante da sensatez de Gustavo, nossas ideias eram pura lorota.

Foi a mesma coisa daquela vez que peguei um resfriado. Eu não tinha febre ou dores pelo corpo, mas meu nariz escorria bastante. Todos os meus lenços estavam encharcados e eu não estava nem um pouco disposto a ir à aula. Ainda assim, sob ameaças de levar uma surra de minha mãe, entrei a contra gosto no ônibus escolar e fui para a escola. Antes do recreio meu rolo de papel higiênico já havia acabado e toda a turma já me olhava com desagrado, tamanho o incômodo que eu causava por assoar o nariz o tempo todo.

Sem mais papel higiênico, eu estava assoando o nariz e encardindo o interior da minha blusa de frio quando me sentei no pátio da escola durante o intervalo. Neste ponto minha narina direita estava totalmente entupida, e eu tentava desimpedi-la.

Não demorou muito e Gustavo apareceu, andando bem devagar e sentando-se ao meu lado. Tenho certeza que ele sequer reparara que era eu quem estava ali. Decidi ignorar a presença dele e cuidar de lamentar minha enfermidade. Assoei o nariz muito forte e por muitas vezes, o suficiente para chamar a atenção dele, que parou de ler em determinado momento e ficou me encarando. Olhei para ele, desafiando-o com um olhar a ousar me reprimir.

– Já lhe ocorreu que tentar desentupir o nariz desta forma pode não ser uma boa ideia? – ele perguntou como quem sugere que o outro faz algo estúpido.

– E porque não? – perguntei. Não conhecia outra maneira de desentupir uma narina entupida se não tampando a desentupida e soprando pelo nariz com força. Eu disse isso a ele e ele falou como quem explica o óbvio a um idiota:
– Acontece que se estiver muito entupido e o ar não puder sair por ali, ele vai tentar sair por outro lugar. O tímpano é bem frágil.

Ele disse a ultima frase como se estivesse comentando para si mesmo. Talvez isso indicasse presunção; talvez indicasse que se achava mais inteligente que eu por saber o que é tímpano e eu não. Se era o caso, era ele o estúpido, pois eu sabia muito bem o que é um tímpano.

– Nunca ouvi falar de alguém que tivesse estourado o ouvido por assoar o nariz – eu falei.

– Mas pode acontecer.

– Ah, é? Onde você leu isso?

– Não li em lugar nenhum, pensei nisso sozinho.

– Ah, é? E o que sugere então que eu faça, você por acaso é otorrinolaringologista? – questionei, irônico.

Ele pensou pouco e sugeriu:

– Talvez seja melhor não tampar totalmente o outro buraco no nariz. Tampar apenas metade, sabe.

– Ah, me deixa em paz seu nerd gordo – eu disse.

Sem dizer nada, e com uma expressão de indiferença que me irritou (eu esperava que ele se irritasse com a ofensa, mas ser imaturo quando ele foi maduro me incomodou), ele se levantou e foi embora, me deixando ali sozinho.

“CDF filho da mãe” pensei (provavelmente não com essas palavras, mas pensei). “Vem aqui insultar minha inteligência, tirando sarro da minha maldição. Tomara que ele fique gripado e que os dois buracos do nariz entupam. Quero ver como ele irá desentupir.”
Virei a manga da blusa do avesso, encostei-a no nariz e assoprei com força, decidido a desentupi-lo e provar para ninguém mais se não apenas a mim mesmo que o CDF não tinha sempre razão.

 

Hoje sou surdo de um dos ouvidos.

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