A Morte da Via Láctea

Farrel Kautely

A Morte da Via Láctea

Moro num apartamento novo há sete meses e meio. O prédio fica no centro de Bela Vértice, na parte mais cinza e sem graça da cidade, onde o Sol parece mal chegar a tocar o asfalto devido à grande quantidade de edifícios. É um lugar tranquilo. Tem sempre um porteiro na portaria, elevador, tapetes felpudos de “bem-vindo!”, luz ambiente avermelhada… bem aconchegante.

Moro no décimo andar, e mal escuto a algazarra ocasional sobre as calçadas e avenidas. Meu apartamento é o mil e cinquenta; o da minha vizinha o seiscentos e quarenta.

Minha vizinha é uma senhora que mal sai de casa. Quando a conheci estávamos no térreo. Ela entrou no elevador junto a mim carregando dois enormes sacos de papel. Cumprimentei-a. Quando o elevador atingiu o terceiro andar, a base de um dos sacos rasgou e eu, imediatamente, me abaixei para pegar os pacotes de comida de gato, as verduras, os legumes e os pães que rolaram pelo chão. Ela me agradeceu e perguntou quem eu era. Respondi dizendo meu nome e que me mudara para o prédio recentemente. Ela me convidou para tomar café em sua casa.

Agradeci o convite, apontei para a comida de gato e disse:

— Sou alérgico. Mas se você não se importar, podemos tomar café no meu apartamento.

Ela concordou e combinamos a ocasião. Quando ela chegou levei-a até a cozinha (pequena, mas com uma mesa com duas cadeiras no meio) e tomamos chá enquanto conversávamos. Percebi logo que era uma mulher solitária. Raros amigos e parentes morando em outras cidades, além de um filho que só ligava no dia das mães e no natal e uma aposentadoria que não tornava sua vida tão agradável quanto gostaria. Fiquei surpreso ao saber que ela era bem mais velha do que aparentava, e gostei das conversas dela. Ela (como toda pessoa mais velha, acho) gosta de contar suas histórias interessantes: situações inusitadas e engraçadas, historias dramáticas, como o dia que a mãe dela morreu; das ciladas das quais escapou e nas quais caiu… Isso por si só já me faz achá-la incrível desde aquela primeira visita. Mas havia algo a mais, algo engraçado. De vez em quando, como quando a conversa pausava com ela terminando uma história ou algo assim, por exemplo, ela falava coisas sem sentido. Nas primeiras vezes eu achava estranho e ficava tentando encontrar alguma ligação com o assunto anterior. Depois parei de me preocupar e passei a me divertir. Eram frases como “o superior acha que o cotonete só quer saber da rachada”, “é engraçado como a Via Láctea gosta ficar entre o superior e o inferior”, “o gigante só sabe perseguir a pata de cavalo” e “estou preocupada… o caroço do angu está enorme!”… hilário, se você parar para pensar.

Num sábado desses, no final da tarde, a campainha tocou e eu soube que era ela. Abri a porta e vi que ela estava meio curvada. Levei-a até a cozinha, notando que ela arrastava os pés para andar, e era evidente que sentia dores; aparentemente leves ou moderadas. Talvez doesse muito… ela é durona.

— O que aconteceu, Leila? — perguntei a ela quando nos sentamos.

— Escorreguei na lambida da barata — ela respondeu rindo, num tom descontraído que buscava me dizer que eu não precisava me preocupar. Achei graça na resposta e perguntei se ela estava precisando de alguma coisa.

— Está precisando de alguma coisa?

— Estou precisando comprar umas coisas, mas não quero incomodar você.

— Quê isso, não vou me incomodar. Vou comprar e levar na sua casa, tudo bem? Espera um pouco, já volto — eu disse. Levantei e fui até a sala pegar um papel e uma caneta, enquanto ela falava da cozinha:

— Mas e sua alergia?

— Tenho um antialérgico aqui — menti.

Ela fez uma lista de compras. Pouco depois nos despedimos. Fui ao supermercado e depois à farmácia comprar um anti alérgico para experimentar. Tinha lido a respeito e achado incrível que tivessem um específico para alergia a gato.

Voltei para o prédio. Foi a primeira vez que fui ao sexto andar, e a primeira, em meses, que visitava minha amiga. Ela não achava ruim, já que eu tinha lhe contado as aventuras de quase morte que tive por conta do gato de uma ex namorada, ou melhor, ex noiva. Houve uma vez que espirrei tanto que mal tinha tempo para respirar. Quase morri asfixiado.

Bati na porta dela, pensando que poderia ir mais vezes caso o antialérgico se mostrasse eficiente. Vi que isso não seria possível no momento em que ela abriu a porta.

Só num brevíssimo instante pude contar, atrás dela, seis ou sete gatos. Ela me convidou para entrar e, a cada passo, mais gatos ficavam visíveis. A casa era limpa, não tinha cheiro de urina ou merda de gato. Pelo contrário, um cheiro gostoso, provavelmente de incenso, estava espalhado pela casa. O antialérgico fazia efeito, não soltei um único espirro enquanto três gatos se enroscavam em minhas pernas.

— Onde deixo isso? — perguntei, mostrando as sacolas que carregava.

Ela me indicou a direção da cozinha e, ao começarmos a ir na direção indicada, ela me apresentou o primeiro:

— Esse aqui é o Pelego…

Achei o nome engraçado e ri.

— … e aquela danadinha ali é a Barata.

Eu não estava REALMENTE interessado em saber os nome dos gatos dela, mas esse me fez parar e encarar, intrigado. Olhei para a gata, depois para Leia, de volta para a gata e novamente para minha amiga.

— Foi na lambida dela que você escorregou?

— É.

Tive a sensação de uma faísca de compreensão acender em minha mente e inchar como um balão.

— E aquela ali, qual é o nome dela? — perguntei, apontando para uma gata toda marrom, com exceção da cabeça, que era branca.

— Esse aí é o Cotonete. Aquele é o Inferior e aquela ali fingindo que está escondida embaixo da mesa é a Pata de Cavalo.

Foi nesse dia que descobri que ela tem dezessete gatos no apartamento dela.

Ou melhor, dezesseis. A Via Láctea morreu semana passada. Encontrou uma abertura na rede da janela da sala e já viu, né?

 

 

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