Instante por instante

Cássio de Miranda

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Instante por instante 2

Quando pensamos em existencialismo, certamente lembramos de Dostoiévski (e literatura russa no geral), Sartre, Nietzsche, Kierkegaard. Pensamos em narrativas ou análises filosóficas complexas, às vezes tão difíceis que nos deixam com dor de cabeça ou com aquela sensação de que sabemos nada sobre nada. É natural para uma pessoa adulta, que muito provavelmente já passou por momentos ruins durante a vida, contemplá-los e perceber que há duas opções frente ao desespero: sucumbir ou ir em frente como se fosse apenas mais uma fase desse jogo bárbaro que é a existência humana. Problemas como depressão e ansiedade parecem ser sintomas dessa luta existencial que cada um de nós tem no subsolo da nossa consciência. Afinal, a vida adulta nos força a fazer escolhas desconfortáveis, e testa nossa fibra moral (e muitas, muitas vezes falhamos no teste).

Mas o que uma criança teria pra dizer sobre as dores da vida humana? Antes ainda: será que uma criança é capaz de fazer reflexões tão profundas acerca de algo que ela experimentou tão pouco? Bem, se fora da ficção não conseguimos encontrar, na ficção certamente há.

Yukio Mishima foi um escritor japonês. Sua infância não foi das mais alegres aparentemente: foi separado dos pais ainda criança, e morou com a avó, uma aristocrata de sangue frio. Mishima cresceu isolado, sem muito contato com outras pessoas de sua idade, e durante a vida relativamente curta, desenvolveu uma obsessão pela morte. Cometeu suicídio por seppuku (resumidamente, ritual muito ligado aos samurais, em que o guerreiro corta a própria barriga, deixando as vísceras expostas) em 1975.

Uma de suas obras mais conhecidas é “O marinheiro que perdeu as graças do mar”. A história gira em torno de Noboru, uma criança que perdera o pai na guerra, mas que vive confortavelmente com sua mãe, Fusako. Noboru desenvolve um fascínio pelo namorado dela, Ryuji, que, pra decepção do menino, desistiu da vida de marinheiro para ficar com a mulher.

Noboru tinha um grupo de colegas com o qual matava algumas aulas para compartilhar reflexões e situações pelas quais passavam, geralmente com a família. Os integrantes eram todos muito peculiares – acreditavam que sentimentos, qualquer que seja além do desdém por tudo o que existe, é sinal de imaturidade, e que o controle sobre si mesmo lhes dava o poder de fazer absolutamente qualquer coisa. Para avaliar a resistência psicológica e emocional dos companheiros, o chefe prepara um teste: morte e desmembramento de um gato e, mais tarde, de uma pessoa. É possível adiantar que todos passam no primeiro teste. Já no segundo, cabe ao leitor interessado descobrir.

Noboru e o chefe de seu grupo são personagens de profunda complexidade psicológica. Não é atoa que Yukio Mishima usa principalmente os dois para externar suas ponderações acerca da vida. Em um dos trechos que narra o grupo reunido, o Chefe nos oferece uma boa reflexão sobre perigo e existência:

“Claro, viver é meramente o caos da existência, mas mais do que isso, é a ocupação de desmantelar a existência instante por instante, até o ponto onde o caos original é restaurado, e conseguir forças da incerteza e do medo que o caos traz para recriar a existência, instante por instante.”

Bem, é certo falar que não são todos os jovens de 13 anos que conseguem detalhar o sentido (ou a falta dele) da vida em palavras tão lúcidas que chegam a soar estranhas. Também é seguro falar que nem mesmo nós, pretensos adultos com complexas experiências de vida, conseguiríamos chegar a uma ideia como essa. Somos, aparentemente, incapazes de exercitar a vida como o Chefe a define: recriação da existência, a todo momento, durante todo tempo. O quão cansativo seria viver com isso ativamente pulsando em nossas cabeças?
Noboru, como um Nietzche de 12 anos, faz a Ryuji a pergunta que, acredito, já tenha passado pela cabeça de todos:

“Pai, você pode me dar uma única razão pela qual se continua a viver? Não seria melhor apenas desvanecer o mais rápido possível?”

Em resumo, caro leitor, Yukio Mishima quer nos perguntar: até que ponto você é capaz de enfrentar o caos da existência sem sucumbir ao desespero? Como encaramos o desmantelamento da existência, o que fazemos com o caos primordial, e de onde tiramos a força pra reconstruir isso que o Chefe chama de vida, instante por instante?

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