Ecos de Paris, a Cidade das duas Gestapos

Frank Wan

Descrevo rapidamente o início da Gestapo e a sua instalação em Paris, o início da “Gestapo francesa” e suas atividades, e termino com indicação do filme “Carlingue” fazendo algumas notas quer sobre a montagem, quer sobre a proximidade da narrativa aos factos.

O termo tenebroso “Gestapo” é um acrónimo para Geheime Staatspolizei (Polícia Secreta de Estado), no fundo, a polícia política de estado do Terceiro Reich. É de conhecimento geral que foi fundada por Hermann Göring e impulsionada e estabelecida nos territórios ocupados por Heinrich Himmler. Fazia parte dos Reichssicherheitshauptamt (Gabinete central de segurança de estado) dirigidos por Heirich Müller de 1934 a 1945 (conhecido como “Gestapo Müller”).
Em 14 de Junho de 1940 Paris é declarada “cidade aberta” e as tropas alemãs desfilam garbosamente sobre os Champs Elysées. Ach!!! Le “Gross Paris”!!!

 

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A 9 de Maio de 1942, Adolf Hitler nomeia Karl Albrecht Oberg o Höhere S.S e Polizeifuhrer (Chefe de todas as polícias) de França. Karl Oberg é o chefe máximo das diversas forças policiais em França e deve ainda assegurar a ligação estreita com Himmler e as autoridades alemãs em França, bem como com o governo de Vichy. “Diz-se” que o famoso edifício da rua da Faisanderie, o número 49, no Bairro 16 foi uma escolha pessoal do próprio Karl Oberg.

Os agentes das SS, ao contrário do mito urbano, cinematográfico e da direita extrema, não são agentes de alguma ideologia pura e ideal: são, entre outras tarefas, os grandes gestores de toda a criminalidade.

A gestapo em Paris está germanicamente bem organizada, subdividida em diversas secções. Instalada na Rua de Lauriston, no número 93, no mesmo Bairro 16 está a famosa “Carlinga”, a secção francesa da Gestapo. O termo popular “Carlinga” designa tanto a organização como o edifício. A Carlinga vai escrever uma página negra na história da França: franceses torturam e executam franceses, e fazem todo o trabalho sujo das SS. São lobos franceses com uma coleira e trela alemãs.

 

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A Carlinga é dirigida por um criminoso sanguinário, Henri Chamberlin, mais conhecido como Henri Lafond, e por um inspector sem escrúpulos, Pierre Bonny. De uma forma geral, estes “serviços” tinham dois objetivos: apropriar-se dos bens das casas dos judeus enviados para os Campos de Concentração e recolher informações convenientes ao exército alemão junto da população francesa. Para este fim, Lafond, vai recorrer a uma mistura de elementos do Milieu (a mafia), de criminosos de todo tipo e também a polícias despedidos, reformados e desonestos. Os membros das quadrilhas e grupos de criminosos são perfeitos para este fim, uma vez que são, normalmente, pessoas de baixa estirpe social, poucos estudos e totalmente despolitizados, sem qualquer noção de ideologia, ética ou patriotismo, a pátria deles é o dinheiro!

Pierre Bonny, tem muitos defeitos pessoais, mas é um excelente polícia, um grande organizador e orientador de homens e processos policiais, ele traz à Rue Lauriston toda uma eficácia que todas as outras secções da Gestapo não tinham.

 

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Lafond não passa de um criminoso mediano de Paris que passou a grande maioria da vida preso e, por um bambúrrio, cruza-se com dois espiões alemães que se dirigem a Paris quando a população parisiense foge, não é “nazi”, ao contrário do que muitos pensam, é certo que usava o uniforme dos SS para impressionar e sentir-se poderoso, mas não é como o escritor Louis-Ferdinand Céline ou outros, não tem um pensamento organizado sobre questões políticas, é apenas um oportunista vaidoso extremamente eficaz e sádico.
Temos, assim, a mistura perfeita: a violência e espírito empreendedor de Lafond com o rigor judiciário de Bonny. Não é por acaso que a “Carlinga” toma o nome de “bando de Bonny-Lafond”. A história destas duas personagens é a história da Carlinga. A Gestapo francesa é extremamente eficaz: desmantelou diversas redes de Resistência, mesmo as mais bem organizadas, e até a própria Geneviève de Gaulle foi presa pessoalmente por Bonny. É praticamente unânime entre os que passaram das mãos da Gestapo francesa para a Gestapo alemã que os franceses eram infinitamente mais sádicos que os alemães.

Numa situação geral de guerra com todas as limitações humanas inerentes, os membros da carlinga, munidos de autorizações de livre circulação, o famoso “carton” (cartão) que não passava de um “Ausweis” (Livre trânsito), tornam-se intocáveis e estão, praticamente, em roda livre, não há nada que não possam fazer contra qualquer pessoa ou instituição: o portador do “carton” pode mesmo dar ordens aos polícias e militares alemães, tem total liberdade de circulação e acesso em qualquer meio e, muito importante num ambiente de total escassez, tem um bom carro e gasolina à disposição e está munido de armas moderníssimas. A “carlinga” dedicava-se a todo o tipo de atividades criminosas: intimidação, corrupção, extorsão, assassinatos, proxenetismo, prostituição, lavagem e tráfico de dinheiro, jogo, assaltos, tráfico de armas, tráfico de víveres, tráfico de droga, etc.

 

Ecos de Paris, a Cidade das duas Gestapos

 

Enquanto Paris morre de fome, na rua Lauriston o champanhe desliza como um rio e todos os dias são noites de pândega, sempre mais coloridas, mais barulhentas, com cada vez mais estrelas do mundo do espetáculo a abrilhantar o exotismo do ambiente: modelos da moda, mulheres lindíssimas, cabaret aberto… e a Paris da Gestapo francesa na rua Lauriston é uma festa!!

À medida que o tempo passa, há cada vez menos casas a pilhar, os judeus, por exemplo, vão desaparecendo, e os serviços da Carlinga vão, pouco a pouco, dedicar-se à luta direta contra a Resistência. Em 1944, Henri Lafond, face aos diversos problemas que a Resistência colocava, sob as ordens de um dos homens fortes das SS de Paris, o coronel Helmut Knochen, e juntamente com o extremista argelino Mohamed El Maadi, cria a Légion nord-africaine (LNA) (Legião Norte-africana), ou Brigade nord-africaine (BNA)(Brigada Norte-africana), assumindo a patente de capitão das SS. O objetivo era combater em locais bem determinados a Resistência. A gigantesca maioria dos seus membros são muçulmanos criminosos violentíssimos recrutados entre a comunidade Norte-africana em França e, em grande parte, em Paris que procuram por este meio fugir a algum julgamento e condenação. Muitas vezes, em certos escritos rápidos de autores menos atentos, a Legião Norte-africana é confundida com a famigerada “Falange africana” (Phalange africaine).

No fim da guerra há um processo rapidíssimo sob gigantesca pressão dos serviços de espionagem franceses. O público, com a sanha que se compreende, queria execuções céleres dos traidores e não convinha mesmo nada a um conjunto vastíssimo de pessoas que se soubesse das suas ligações ao grupo Bonny-Lafond.
Muitos dos membros da Gestapo Francesa vão reciclar a imagem juntando-se à Resistência e, depois da guerra, são eles que vão voltar a dominar o mundo do crime.

Em 2004, Denys Granier-Deferre, dirigiu um filme alusivo ao tema cujo título é a morada da sede da “Gestapo francesa”, 93 rue Lauriston.

 

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O filme inicia-se com o momento em que o Inspetor Bloc (Michel Blanc) prende Lafond e alguns membros do seu grupo em 30 de Outubro de 1944. O resto do filme é dirigido de forma muito simples: Bloc interroga alguns dos participantes e, no fundo, acompanhamos os depoimentos com imagens de reconstituição em flashback.
Um filme bastante próximo do Documentário com as concessões naturais à linguagem cinematográfica. Algumas das opções são perfeitamente compreensíveis e outras, como a utilização de uns turbantes folclóricos no uniforme das forças da Legião, eram escusadas.

As cenas de tortura estão bastante bem descritas. Havia, de facto, um mecanismo que permitia mergulhar a cabeça do torturado na água de uma banheira no meio da sala. Os desmaios eram frequentes e as vítimas eram acordadas com a introdução na boca de um pano que continha uma mistura nauseabunda de sabão e gasolina.
É um daqueles pequenos filmes que dá, em pouco mais de uma hora, uma ideia geral muito próxima de uma faceta desta parte da história. Um filme extremamente pedagógico.

 

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