Trabalho leve não dá direito a segundo prato

Cássio de Miranda

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No inverno, para saber mais precisamente a temperatura caso os termômetros quebrassem, o camarada Chalámov cuspia. Quando o cuspe congelava no ar, indicava que a temperatura era de mais ou menos sessenta graus negativos. Não havia aquecimento interno ou refeição quente. O trabalho não podia parar sob pretexto nenhum, sob pena de execução. No verão, os camaradas vomitavam (ar, que era o que tinha no estômago) ao sentir o cheiro de suor de homens que não tomavam banho há semanas. Os que trabalhavam nas fornalhas literalmente morriam de calor.

Independente da estação, a fome era uma companheira constante. Alguns passavam toda sua pena sonhando com um mísero pedaço de pão a mais além dos 30 gramas diários. Para outros, aquela sensação de vazio literal cauterizava e simplesmente se transformava em um novo padrão ao qual o corpo tinha que se adaptar. Se não se adaptasse, a morte era ainda mais certa.

Tais eventos parecem ser tirados de um livro que conta sobre a escravidão, e é exatamente esse o caso. Varlam Chalámov, um russo que, pouco antes da década de 1930, foi condenado pelo artigo 58 do Código Penal da República Socialista Russa, por supostas atividades antirrevolucionárias, a algumas décadas nos gulags – campos de concentração da Rússia Soviética. Ao ser liberto pela segunda e última vez, Chalámov trabalhou em sua obra Contos de Kolimá, que consistem em mais de duas mil páginas de memórias da prisão no extremo norte da Rússia. A editora 34 dividiu a obra em seis volumes, todos eles com breves contos acerca dos acontecimentos presenciados pelo autor. Todos eles descrevem situações brutais sobre a vida de encarceramento, privação de sono, fome, morte por doenças simples e alguns casos tão perturbadores que, de vez em quando, uma pausa na leitura faz bem.

Talvez o aspecto jurídico do processo penal do sistema soviético que melhor resuma a brutalidade Stalinista seja esta: como Chalámov conta, existiam duas classificações para os condenados, “amigo do povo” e “inimigo do povo”. Na primeira categoria entravam os assassinos, ladrões, estupradores. No segundo, os opositores ideológicos do regime. Mas, mesmo com essa diferença classificatória de um viés ideológico cruel, amigos ou inimigos do povo eram a mesma massa humana submetida a fatores ambientais e sociais extremos, de quem o Estado esperava apenas o trabalho exaustivo para o bem e progresso da Mãe Rússia.

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