Linguagens e formas da cultura multitelar em “Homens, mulheres & filhos”

Verônica Daniel Kobs

Linguagens e formas da cultura miltitelar em “Homens, mulheres & filhos” 7

Este trabalho propõe a análise do livro Homens, mulheres & filhos, de Chad Kultgen, e do filme homônimo, dirigido por Jason Reitman. Tomando como base o predomínio da tecnologia na sociedade do século XXI, objetiva-se discutir os elementos da história que demonstram de que forma as novas mídias reconfiguraram o comportamento individual, as relações interpessoais e o aspecto formal da literatura e do cinema. No primeiro aspecto, serão enfatizados o afastamento físico entre as pessoas, a superficialidade das novas formas de interação, o narcisismo e a oposição entre dois contextos: o real e o virtual. Quanto ao segundo item, esta análise pretende associar o conceito de multiplicidade às diversas mídias que integram o cotidiano da sociedade contemporânea. Nessa relação, serão apresentados: o recurso metalinguístico e a influência das novas mídias na constituição da cena (no filme); bem como as diferentes linguagens e a fragmentação narrativa (no livro e no filme).

Índice de conteúdo

Lançado em 2011, o livro Homens, mulheres & filhos apresenta a multiplicidade em dois grandes aspectos: temático e estrutural. O assunto abrange as relações interpessoais e o comportamento que determina a sociedade atual, em plena era da tecnologia digital. Correspondendo a isso, o romance traz capítulos que se dividem, em partes bastante curtas, que fragmentam a história em pequenos enredos, vividos por inúmeros personagens. Esse processo de alternância é progressivo. O primeiro capítulo, por exemplo, não faz divisões e apresenta apenas um personagem: Don Truby. O próximo capítulo, que apresenta principalmente Danny e Tim, divide-se em dois. No capítulo três, os personagens e as situações se proliferam, o que resulta em cinco partes. A partir daí, o leitor passa a se acostumar com a interrupção frequente, encadeando as partes, que variam de uma a três páginas e que se sucedem sem aviso, relacionando-as aos personagens, usando como critérios a lógica e a continuidade. Entretanto, quase ao final da história, os cortes tornam-se mais frequentes, a ponto de serem apresentadas quatro partes, protagonizadas por quatro personagens distintos, totalizando apenas duas páginas:

Linguagens e formas da cultura miltitelar em “Homens, mulheres & filhos”

 

A imagem acima demonstra a alternância e a fragmentação que predominam no romance. Contudo, ao longo de todo o livro, percebe-se a coincidência na introdução das partes: “Do outro lado do recinto, […]” (KULTGEN, 2014, p. 28); “A alguns quilômetros dali, […]” (KULTGEN, 2014, p. 44); e “A alguns quarteirões dali, […]” (KULTGEN, 2014, p. 46). Isso reflete a oposição quase paradoxal que caracteriza nossa sociedade hoje: proximidade física e distância afetiva, resultantes da alienação e do individualismo impostos pela tecnologia: “[…] as tecnologias da comunicação são […] zonas limítrofes, que testam os paradigmas vigentes, que recompõem, reestruturam, que permitem a especulação sobre novas formas de convivência” (ONÇA, 2014, p. 77). Entretanto, associando-se a multiplicidade de personagens às diversas narrativas, que se sucedem e se entrecortam, percebe-se que a estrutura do romance tenta representar a fragmentação típica deste novo século: “[…] em matéria de temporalidade, o tempo não é mais inteiro, mas indefinidamente fracionado em quantos instantes, instantaneidades, quanto permitem as técnicas de comunicação e de telecomunicação” (VIRILIO, 1999, p. 57).

Em 2014, o livro de Kultgen ganha uma adaptação cinematográfica, dirigida por Jason Reitman. A versão fílmica tem a duração de 1h59min, justificando o corte de alguns personagens e a abreviação de algumas situações. Essas sínteses são recorrentes nas adaptações e Reitman faz boas escolhas. Ele corta Tracey e Jim, que são os pais de Danny Vance e que têm como principal problema a opção pelo melhor método contraceptivo: preservativo ou vasectomia. De fato, esse tema contribui pouco para a discussão sobre a tecnologia e suas influências nas relações interpessoais. Em contrapartida, o diretor opta por dar mais amantes a Rachel, casada com Don, o que serve para distanciar ainda mais o casal. Como se vê, as interferências de Reitman mantêm um equilíbrio, além de ressaltar os conflitos que mais importam ao livro e ao próprio filme. Nas palavras do diretor: “O filme não pretende dar respostas ao que está acontecendo agora; serve como um espelho da atualidade” (HOMENS, 2014).

Quanto ao final, porém, a direção não tem o mesmo êxito nas alterações que foram feitas. A adaptação fílmica fecha a história, propondo um final mais otimista, o que contraria as análises atuais, feitas por sociólogos e filósofos, sobre as relações pessoais e o perfil do sujeito, na sociedade contemporânea. Considerando as escolhas do diretor, podemos aventar a hipótese de que Reitman não chega simplesmente a negar os problemas sociais da atualidade. Em vez disso, o otimismo pode ser visto como um contra-argumento, na tentativa de mostrar que a colaboração e a proximidade têm chances de ser restauradas. Jennifer Garner, que interpreta Patrícia, a mãe de Brandy, no filme, refere-se a isso, nos Extras do DVD: “[…] o que queremos mesmo é uma conexão verdadeira. É um ótimo lembrete de que há consolo nisso e em assistir aos personagens acharem a conexão no final” (HOMENS, 2014). As palavras da atriz resgatam um trecho da obra de Carl Sagan, que o diretor escolhe para o gran finale:

 

Em toda essa vastidão não há nenhum indício de que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nós mesmos. […]. Talvez não haja melhor demonstração da tolice das vaidades humanas que essa imagem distante do nosso pequeno mundo. Ele enfatiza nossa responsabilidade, de tratarmos uns aos outros com mais gentileza. (HOMENS, 2014)

Além dessa mudança drástica de perspectiva, que insinua um caráter formativo, Reitman ameniza a tentativa de suicídio de Tim, oferece o perdão de Patrícia à filha e ao namorado, além de dar atitudes fortes e reativas a Brandy e a Allison. Tudo isso vai contra as escolhas do escritor Chad Kultgen, todas elas bastante coerentes com a multiplicidade e com a individualidade que nos caracterizam hoje. O texto literário, desde a página 299 até a 351, apresenta os finais de cada personagem, todos eles desagradáveis, sinalizando futilidade, autoritarismo, humilhação e disputa. Em nenhum caso há esperança. Aliás, nas histórias de Hannah e de Allison, há recaídas e reincidências. Hannah se submete às perversões de Chris, para recolocar seu site no ar, e Allison volta a transar com Brandon, mesmo depois do aborto e da rejeição que sofreu. Até Danny Vance surpreende negativamente, ao fim do livro, quando transa pela primeira vez com a namorada, praticamente estuprando-a, para se vingar da derrota no jogo da noite anterior, quando ela desviou a atenção dele do time, e da vitória. Em 50 páginas, o leitor se faz perplexo, pela violência moral e pela inércia de alguns personagens, que preferem a submissão, pois não se acham capazes de conquistar algo a mais. A história de Kultgen não se fecha exatamente. Depois da tentativa de suicídio de Tim, por exemplo, não há indícios de que o namoro com Brandy irá continuar, ou de que ele voltará ao time. E assim ocorre com todos os personagens. O escritor apresenta um final aberto, recurso que favorece a multiplicidade e a crítica (tanto a do autor como a do leitor). Conforme Umberto Eco, a obra aberta atua “como mediadora entre a abstrata categoria da metodologia científica e a matéria viva de nossa sensibilidade; quase como uma espécie de esquema transcendental que nos permite compreender novos aspectos do mundo” (ECO, 1997, p. 157).

A alternância, associada à narrativa rápida e aberta, relaciona-se também, tanto no livro como no filme, ao dialogismo, à intertextualidade e ao aspecto multimidiático. O primeiro item pode ser exemplificado com os nomes de programas de TV (Two and a half men e American Idol, entre outros), a filosofia de Noam Chomsky e o jogo preferido de Tim (World of Warcraft3). Como intertexto, a obra do astrônomo Carl Sagan (Pálido ponto azul4) tem importância decisiva, principalmente no filme. Enquanto, no romance, trechos desse livro são frequentes na história de Tim Mooney e também na epígrafe, no filme a interferência deles é maior:

 

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Kultgen usa as palavras de Sagan como epígrafe apenas, mas Reitman amplia esse recurso, que de paratexto (Cf. Genette, 2005) passa a ser o principal intertexto (Cf. Bakhtin, 2014) da adaptação fílmica. O diretor, inclusive, transfere a epígrafe para o final, levando a citação de Sagan além, o que garante um final otimista (em vez de desolador), conforme já mencionado anteriormente. Essa oscilação faz parte da obra de Sagan, mas não da de Kultgen. Ao passo que o astrônomo motiva a gentileza mútua, tal como demonstrado no trecho anterior, usado por Reitman para encerrar o filme, ele também menciona nosso egocentrismo, nesta passagem:

 

Pode-se imaginar um observador extraterrestre severo olhando a nossa espécie com desprezo durante todo o tempo, enquanto tagarelávamos animadamente: “O Universo criado pra nós! Somos o centro! Tudo nos rende homenagem!” E concluído que nossas pretensões são divertidas, nossas aspirações patéticas e que este deve ser o planeta dos idiotas. (SAGAN, 1996, p. 13)

Outro exemplo de intertextualidade, mas agora vinculado às diversas mídias, é a transcrição da comunicação dos personagens, que utilizam SMS:

Foi Hannah quem puxou papo enviando uma que dizia “Como vc tah?”, ao que Chris respondeu com “Bem… O que vc tah fazendo?” […]. A certa altura Chris mandou uma mensagem que dizia “O q foi akele bj?” (KULTGEN, 2014, p. 88)

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Os exemplos citados acima não apenas acentuam a multiplicidade de mídias e de linguagens, mas também atualizam o formato do romance, que incorpora textos próprios da tecnologia digital, que utilizam um código específico e mais afeito à informalidade. Jason Reitman aprofundou essa ideia e, no longa, decidiu variar o layout das mensagens, a fim de enfatizar a verossimilhança. Gareth Smith, designer chefe do filme, explicou essa escolha da equipe de produção: “[…] cada app de mensagem de texto tem um visual. Então, queríamos refletir isso na tela […]” (HOMENS, 2014).

Devido ao fato de o enredo ser atual e representar o cotidiano (de casais, famílias, adolescentes em casa e na escola), e considerando o predomínio da tecnologia hoje, livro e filme apresentam situações em que a convivência “física” sofre interferência de mídias diversas, que remodelam as relações interpessoais, fragmentando-as, anulando-as ou estabelecendo contatos paralelos e virtuais. Sendo assim, os exemplos variam, criando um pano de fundo plural e intermidiático: “O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. […]. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha” (BAUMAN, 2001, p. 75). Dessa forma, no romance aparecem as mídias mais tradicionais (como a TV, o livro, fotos, revistas, jornais, clipes e panfletos) e aquelas mais novas, que vêm ganhando cada vez mais espaço nos últimos anos (a exemplo de sites, SMS, mmorpg5, blog, e-mail, vlog e redes sociais distintas). Tal variedade justifica uma afirmação de Italo Calvino, que se referiu ao século XXI como uma “época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58, grifo no original). Entretanto, essa proliferação provocou efeito contrário às expectativas, principalmente porque a comunicação virtual muitas vezes se faz em detrimento da convivência familiar ou profissional. Tal consequência consolida o afastamento, a individualidade e a propensão ao conflito, todos resultantes do predomínio das relações virtuais (e não mais físicas). Renato Cordeiro Gomes faz referência ao processo comunicativo vigente descrevendo-o como uma “arena discursiva, conotando embate de práticas, valores (políticos, éticos, religiosos, estéticos), tensões de vozes e concepções de mundo, provocando o surgimento de novos lugares de enunciação e possibilitando o jogo agônico de discursos e contradiscursos” (GOMES, 2008, p. 7). Nesse aspecto, surge outro antagonismo (individualismo e redes sociais) que marca a sociedade atual. Gomes, ao analisar esse cenário, recorre à metáfora da torre de Babel e faz uma espécie de diagnóstico: “[…] a experiência de viver nas grandes cidades modernas, planejadas em função dos novos fluxos energéticos e marcadas pela onipresença das novas tecnologias, influencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de disposição dos seus habitantes […]” (GOMES, 2008, p. 2).

A corroteirista Erin Wilson resume a história do livro e do filme, quando apresenta os personagens, os quais, segundo ela, representam as pessoas de nossa realidade, “tão viciadas em tecnologia a ponto de perder a habilidade de estar presente em carne e osso” (HOMENS, 2014). Na contemporaneidade, a rapidez e a multiplicidade determinam novos comportamentos, fluidos e frágeis6. Para Zygmunt Bauman:

 

As pessoas, em especial no ciberespaço, consomem a atenção, o afeto, o respeito, a curtida, o compartilhamento, o follow, o like, e assim não fundam compromissos sociais concretos. As relações se tornam descartáveis (assim como, de fácil descarte) e extinguem-se nelas mesmas. Ligações frouxas e compromissos revogáveis são os preceitos que orientam tudo aquilo em que se engajam e a que se apegam. (BAUMAN, 2005, p. 11)

A realização mais importante da proximidade virtual parece ser a separação entre comunicação e relacionamento. […].  Estar conectado é menos custoso do que “estar engajado” – mas também consideravelmente menos produtivo em termos da construção e manutenção de vínculos. (BAUMAN, 2004, p. 82, grifo no original)

 

Além de Gomes e Bauman, Paul Virilio, a partir do conceito de “desrealização” (VIRILIO, 1999, p. 57), e Fátima Régis, estudiosa da área de Comunicação e Cultura, também assinalam essa importante mudança social: “Eis o resto de um tempo, de uma duração em avançada decomposição que contribui para degenerar a realidade passada e, através dela, os costumes, as tradições mais encravadas em nossos comportamentos” (VIRILIO, 1999, p. 60); “As interfaces permitem a conexão entre usuários e computadores, colocando à disposição novos serviços e formas de comunicação que redimensionam os processos de interação social e a produção de identidade e de subjetividade” (REGIS, 2012, p. 182). No livro de Kultgen, as refeições tradicionais em família não são uma constante. Don almoça no carro, enquanto dirige para casa, para tentar usar o pouco tempo que tem sozinho para se masturbar: “[…] Don ejaculou num guardanapo do McDonald’s, que amassou e jogou de volta no saco junto com a caixinha vazia de Big Mac e de batata frita” (KULTGEN, 2014, p. 14). Em outra passagem, Tim compartilha uma refeição com o pai, Kent, mas ambos se mantêm em silêncio durante o jantar, que se resume a uma pizza ou a outro tipo de comida pronta: “[…] Tim Mooney terminou de comer os 12 nuggets que havia na embalagem da lanchonete Chik-fil-A que seu pai, Kent, levara para o jantar dele, e um para o seu próprio” (KULTGEN, 2014, p. 49).  Tais exemplos não apenas demonstram um novo tipo de organização do contexto familiar, mas também ilustram o consumo. A mudança de valores e de comportamentos está consolidada a ponto de não provocar estranhamento na maioria das pessoas. Foi instituída uma nova convenção, na qual importam as marcas consumidas, os hábitos adotados e até mesmo a aprovação dos outros, pois, como citado anteriormente, as pessoas consomem até mesmo “a curtida” e “o like”7: “A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2008, p. 71, grifo no original).

Outro componente crucial na representação da sociedade contemporânea, tanto no livro quanto no filme, é o uso das mídias como fuga da realidade e, nesse quesito, merecem destaque os jogos de computador, que utilizam “sistemas de simulação interativa e de simulação por imersão” e que “podem incluir um representante digital (avatar)” (RÉGIS, 2012, p. 183). Nesse processo, o indivíduo constrói uma espécie de realidade paralela, ideal, canalizando aí seus fracassos e suas incapacidades e revertendo-os em possibilidades de sucesso. O simples fato de alguém criar um avatar revela a “incorporação consciente de determinados papéis, do jogo cúmplice de máscaras, […] tanto naquilo que é fantasiado mais do que efetivamente vivido, como naquilo que é vivido de uma forma fantasiosa” (ONÇA, 2014, p. 75). No romance, em conversa com o terapeuta, Tim faz referência à sigla “VR”, que significa “Vida real” (KULTGEN, 2014, p. 236) e que, por vezes, é completamente oposta ao perfil que as pessoas constroem na RV (realidade virtual). Bauman elucida esse processo neste trecho: “Imagens poderosas, ‘mais reais que a realidade’, em telas ubíquas estabelecem os padrões da realidade e de sua avaliação, e também a necessidade de tornar mais palatável a realidade ‘vivida’” (BAUMAN, 2001, p. 99, grifo no original). Em Homens, mulheres & filhos, essa duplicidade é indicada pelos nicknames de alguns personagens. Allison, por exemplo, mantém um blog intitulado Gruta clandestina de Ana. Tim, no mmorpg, “era um mago com poder de fogo frio chamado Firehands” (KULTGEN, 2014, p. 51). Já, no Myspace, o mesmo personagem adotava o nome TimM e sua namorada, Brandy, identificava-se como Freyja. Rachel, mulher de Don, cria um perfil no site AshleyMadison.com, usando o  nickname Boredwife12345, e lá ela se corresponde com um homem, cujo apelido é Secretluvur e que depois se torna amante dela. Mas é Tim Mooney quem mais oscila entre VR e RV, junto com seus companheiros de jogo, apresentados pelo narrador desta forma:

 

Ele conhecia Chucker apenas como o paladino de proteção […]. Nem desconfiava de que a pessoa do outro lado do computador era um gerente de financiamento de 28 anos […]. Ele conhecia Baratheon apenas como o anão sacerdote das sombras […]. Nem desconfiava de que a pessoa que jogava como Baratheon era um estudante universitário […]. Ele conhecia Selkis apenas como o elfo noturno ladino. Nem desconfiava de que a pessoa que jogava como Selkis […] não tinha a menor intenção de se formar, comia um sanduíche Baconator […] e morava com os pais e cinco gatos. (KULTGEN, 2014, p. 52-53)

Tratando especificamente da função dos jogos na vida cotidiana, Marshall McLuhan afirma: “Os jogos que uma pessoa joga revelam muito sobre ela. O jogo é uma espécie de paraíso artificial, como a Disneylândia, ou uma visão utópica pela qual completamos e interpretamos o significado de nossa vida diária” (MCLUHAN, 1969, p. 266). Essa afirmação, somada à de Bauman e aos exemplos de second life mencionados acima, reforçam o modo como o romancista representa nossa sociedade. O diretor do filme também comenta o problema, nos Extras do DVD: “Temos medo de quem somos. Então, usamos avatares e nos conectamos com estranhos. Nós nos transformamos em pessoas que não somos” (HOMENS, 2014). A versão fantasiosa criada pelos personagens, no livro e no filme, associa-se às questões de identidade e alteridade, porque provoca um “rearranjo das narrativas, dos saberes e das condições de subjetividade” (RÉGIS, 2012, p. 175). Evidentemente, nesse aspecto, a possibilidade de compartilhamento é determinante. Passando do espaço privado para o público, numa transição que se relaciona intrinsecamente com a “espetacularização do eu” (SIBILIA, 2005, p. 47), o indivíduo forja um perfil ideal, que agrade a si e aos outros. Desse modo, consolidam-se a negação da realidade8 e o narcisismo9.

No aspecto formal, o uso das mídias não apenas define a multiplicidade, mas também interfere decisivamente na estética do produto, principalmente no caso do filme. Para enfatizar essa reciprocidade, em que a tecnologia oferece recursos que atualizam e ampliam as expressões artísticas e em que a arte se integra ao contexto do espaço virtual, Denise Guimarães afirma:

 

[…] a obra de arte contemporânea, se acaso perdeu sua hegemonia, aproxima-se da tecnologia não apenas como estratégia de sobrevivência, mas sim de enriquecimento expressivo. Desse modo, em interface com as máquinas, a arte busca nova energia no universo cibernético, naquele mundo híbrido e perturbador, no qual impera a conexão entre natural e artificial. (GUIMARÃES, 2007, p. 39)

No capítulo anterior, sobre o livro S., foi mencionada a estrutura encadeada, a exemplo da caixa chinesa, para tratar do conceito de metalinguagem. Isso também ocorre na adaptação fílmica de Reitman, nas cenas em que a tela do cinema emoldura e abrange outras telas: do computador, do celular e mesmo a tela da TV (Fig. 3). Nesse encadeamento, as mídias são mostradas/utilizadas simultaneamente. Além disso, a estrutura da cena é modificada, de modo que, por vezes, um close-up da tela do computador surge no canto da tela do cinema, em mais um exercício de simultaneidade. A diferença, porém, é que, nesse exemplo específico, o recorte da tela do computador detalha o conteúdo visualizado pelo personagem, aproximando-o ainda mais do espectador (Fig. 4, à esq.). Tal sobreposição serve também para adiantar o conteúdo pesquisado pelo personagem, no computador. Quando isso ocorre, o espectador novamente divide a atenção entre o que o personagem vê (e que aparece na tela de seu aparelho) e o que ele ainda verá (mas que o espectador já pode ver, na tela do cinema, em imagem sobreposta à cena) (Fig. 4, à dir.). São imagens distintas e que preveem continuidade, numa espécie de flashforward.

 

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Segundo o designer do filme, desde o início o projeto do diretor foi refletir, na tela, o modo como as pessoas utilizam o computador e o celular hoje em dia. Isso resultou em uma nova “geografia da tela”, transformando-a “em uma espécie de área de trabalho” (HOMENS, 2014).

 

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No exemplo da Fig. 5 (à dir.), percebe-se que a tela do computador assume o primeiro plano, cobrindo o rosto da atriz. Assim, os elementos tradicionais da cena, no cinema, tornam-se acessórios. Não é tão importante o que o personagem faz ou como o cenário se apresenta. Fundamental, nesse novo formato cênico, é o que aparece na tela do computador. Então, isso é recortado e sobreposto à imagem da ação, que vira um plano de fundo. Do mesmo modo, na Fig. 5 (à esq.), consolida-se essa mudança estética. Apesar de a imagem da tela do computador de Dawn não encobrir toda a cena, ela interfere de modo decisivo no processo de filmagem. Segundo o designer Gareth Smith: “Um único gestor requer dois planos em vez de um só” (HOMENS, 2014). Isso exigiu que o set fosse disposto de modo distinto, não centralizado. No caso específico da Fig. 5 (à esq.), a ação tinha que ocorrer no canto direito do vídeo, para que o lado esquerdo ficasse vazio e pudesse, posteriormente, receber a sobreposição da imagem da tela do computador.

Utilizando o mesmo recurso técnico, também a tela do celular ganha destaque no filme, de modo que o espectador possa visualizar em primeiro plano uma tela específica (Fig. 6, à esq.) ou os textos das telas de vários aparelhos, simultaneamente (Fig. 6, à dir.):

 

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A Fig. 6 (à esq.) é muito similar à Fig. 5 (à dir.), em termos de significado, pois altera a constituição da cena, para representar o predomínio dos smartphones em nossa sociedade. No aspecto técnico, a Fig. 6 (à esq.) assemelha-se à Fig. 5 (à esq.), porque também traz a ação do lado direito da tela, enquanto o lado esquerdo é reservado para a imagem sobreposta. Já a Fig. 6 (à dir.) chama atenção pela multiplicidade de elementos que aparecem na tela. O cenário e a ação, que trazem várias pessoas circulando, em um shopping, favorecem esse efeito. Nessa cena, o objetivo da equipe de produção foi representar, na grande tela, uma linguagem que “representasse a internet”, possibilitando um “compartilhamento em grande escala” (HOMENS, 2014). Para tanto, o projeto foi audacioso e uma interface foi criada para cada personagem e para cada figurante: “Tivemos que criar a parte gráfica para cerca de 45 pessoas” (HOMENS, 2014). Nesse processo, foram usados vídeos e mensagens falsos, bem como fotografias reais, dos atores que participaram da gravação.

Coerente com os exemplos mencionados até aqui, as novas mídias desempenham outras duas funções que asseguram não apenas a sua predominância na sociedade, mas também contribuem para a proposta de novos modelos narrativos, a partir da reformulação das cenas. Trata-se da troca de mensagens escritas via celular para substituir a fala (Fig. 7, à esq.) e da utilização dos jogos on-line para alterar o cenário (Fig. 7, à dir.).

 

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Mais uma vez a intermidialidade sugere novas possibilidades à linguagem cinematográfica. Conforme Denise Guimarães, essa relação é necessária não apenas para a ampliação dos recursos estéticos, mas também para a renovação da arte:

 

[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos propiciam uma investigação criativa, tanto dos meios quanto dos processos, auxiliando a desenvolver visões mais adequadas ao mundo pós-moderno, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia.  (GUIMARÃES, 2007, p. 39)

De fato, as duas imagens da Fig. 7 rompem com a narrativa fílmica tradicional, ao demonstrarem a inserção das linguagens das mídias digitais na adaptação cinematográfica de Reitman. Entretanto, o maior diferencial está no fato de o diretor não usar a sétima arte como modo de abranger e controlar essas novas linguagens. Em vez disso, ele as faz predominar e, nesse momento, Reitman alinha perfeitamente sua obra ao texto-base, de Chad Kultgen. Ambos recusam-se a fazer uma história atemporal e optam pelo recorte e pela sincronia, afinal, segundo o diretor, o objetivo de Homens, mulheres & filhos é “refletir e registrar como o mundo usou a internet no ano específico de 2014” (HOMENS, 2014).

 

Notas
1Artigo vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia da Silva Cardoso.
2 Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Pós-Doutoranda em Estudos Literários na UFPR. E-mail: veronica.kobs@fae.edu
3 Além de servirem de exemplos de dialogismo, os programas de TV e o jogo relacionam-se com o aspecto multimidiático, pelo fato de inserirem outras mídias no texto literário.
4 Esse livro de Carl Sagan, lançado em 1994, foi considerado o livro do ano, em 1995, pelo The New York Times. A história baseia-se na imagem que a Voyager 1 (cuja missão foi iniciada em 5/9/1977) registrou do planeta Terra, em 14/2/1990, a pedido de Sagan: “Dentre as 60 imagens do mosaico, uma delas era o que Sagan queria, dez anos antes: a imagem da Terra obtida a uma distância de 6 bilhões de quilômetros. A esta enorme distância (as imagens levaram 5 horas e meia para chegar) a Terra não chega a ocupar nem sequer um dos 640 mil pixels da imagem! E essa era a perspectiva que Sagan queria dar” (BARBOSA, 2018). Embora o artefato tenha saído do sistema solar, em 2013, a Voyager 1 foi mantida em atividade até 2015 (VIGGIANO, 2018).
5 Sigla para “massively multiplayer on-line role-playing game”.
6 No romance, as relações de “amizade” do personagem Tim Mooney, adepto dos jogos on-line, são descritas desta forma pelo narrador: “Tim gostava dessa comunicação superficial que tinha com os companheiros de guilda. E não queria nada além disso” (KULTGEN, 2014, p. 52).
7 Essa afirmação de Bauman (2005) pode ser comparada a esta outra, de Rabelo, que menciona os efeitos da aprovação ou desaprovação do outro, ao tratar dos relacionamentos nas redes sociais: “As interações nas redes sociais são tão impactantes que afetam áreas do cérebro responsáveis pelo prazer ou pela dor” (RABELO, 2016, p. 6).
8 “O espetáculo […] manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real” (DEBORD, 2005, p. 135).
9 “Em uma conversa ao vivo, temos tendência de fala e 30% a 40% sobre nós mesmos. Nas redes sociais, isso ocorre entre 60% e 90% das vezes, gerando uma espécie de narcisismo” (RABELO, 2016, p. 6).
REFERÊNCIAS
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BARBOSA, C. O Pálido Ponto Azul faz 25 anos. Disponível em: <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/blog/observatorio/post/o-palido-ponto-azul-faz-25-anos.html>. Acesso em: 16 mar. 2018.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
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_____. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
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GENETTE, G. Palimpsestos. A literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
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