A intermidialidade em O grande Gatsby

Verônica Daniel Kobs

A intermidialidade em O Grande Gatsby 1

O filme O grande Gatsby, de Baz Luhrmann, lançado em 2013, é a quarta adaptação do romance de mesmo nome, escrito em 1925, pelo escritor norte-americano Francis Scott Key Fitzgerald. Em 1926, Herbert Brenon dirigiu o filme mudo que foi a primeira adaptação cinematográfica do clássico. A segunda versão para o cinema veio em 1949, com direção de Elliott Nugent. No ano de 1974, foi lançada a terceira adaptação fílmica, e também a mais conhecida, com roteiro de Francis Ford Coppola e direção de Jack Clayton. Para completar essa lista, houve uma adaptação de Robert Markovitz, feita para a TV, em 2000. A versão assinada por Luhrmann é a mais recente e a mais controvertida, razão pela qual constitui objeto de estudo deste trabalho. Apesar de o filme apresentar trechos muito próximos aos do texto literário e de as alterações feitas pelo diretor serem extremamente relevantes, no que diz respeito às características da sociedade contemporânea, as críticas foram bastante negativas. A versão de Luhrmann foi considerada muito inferior ao romance, conforme demonstram os excertos: “[…] há cortes excessivos e uma edição rápida demais para uma história tão baseada em diálogos” (SINAY, 2014); “[…] o figurino extremamente anacrônico […] com silhuetas muito distantes da época retratada” (WITTMANN, 2014); “A câmara é rápida, produzindo cortes abruptos […]. A trilha sonora completa o desastre: o hip-hop gangsta nos desvia ainda mais da ambiguidade dramática da trama” (MARTINS, 2013). Evidente que esses trechos são apenas amostras, ainda que demonstrem os elementos que causaram mais polêmica na crítica especializada. A rapidez do diretor australiano está no topo da lista dos defeitos do filme. Em razão disso, este trabalho irá analisar a adaptação de 2013, a fim de interpretar sob outra perspectiva os elementos que a crítica apontou como falhas. Essa inversão é perfeitamente possível e pode ser exemplificada de modo breve, e de duas maneiras distintas:

a) Há momentos, no romance de Fitzgerald, em que a sutileza dá lugar à agressividade e à descrição detalhada de cenas violentas, como no episódio da briga entre Tom e Myrtle, no apartamento, em Nova Iorque, quando a amante insiste em mencionar o nome de Daisy:

Num gesto rápido, ágil, Tom Buchanan partiu-lhe o nariz com uma bofetada.Surgiram, então, toalhas ensanguentadas pelo chão do banheiro, vozes de mulheres a proferir recriminações e, elevando-se acima de toda aquela confusão, longos e entrecortados gemidos de dor. (FITZGERALD, 1980, p. 48) 

Essa cena, no filme de Luhrmann, sofre um eufemismo. Diminuem-se consideravelmente a agressão de Tom e os efeitos provocados em Myrtle, que, após a briga, aparece com um pequeno sangramento no nariz. Além disso, tudo acontece em meio à festa que todos fazem no apartamento. Desse modo, a ação praticamente se perde no ambiente caótico e bagunçado pelos visitantes, que têm alucinações e agem sob o efeito dos entorpecentes.

b) No filme de 2013, o passeio de Gatsby e Nick à cidade, segundo a crítica, é repleto de “exageros”, tanto na velocidade quanto nas histórias contadas por Jay, para se apresentar ao seu novo amigo. Nesse ponto da história, também muitos espectadores tendem a relacionar as características das cenas ao estilo hiperbólico de Luhrmann. Entretanto, após um rápido cotejamento entre o trecho do filme e o fragmento do romance que lhe serviu de base, conclui-se que o diretor retrata as cenas descritas por Fitzgerald com extrema fidelidade. Portanto, nesse caso, a rapidez e o exagero são do narrador do romance, que assim descreve o passeio: “Com os pára-lamas abertos como asas, atravessamos, céleres, a metade de Astória […] enquanto nos contorcíamos por entre as colunas do trem elevado […]” (FITZGERALD, 1980, p. 85-86).

Com base nessa demonstração, a análise comparativa será dividida em três aspectos: midiáticos, estilísticos e sociais. Essa divisão corresponde, respectivamente, às influências do cinema, do estilo do diretor e do contexto contemporâneo, todas de importância decisiva na adaptação de Luhrmann. Para tanto, serão usados os estudos de Gérard Genette e Robert Stam, entre outros teóricos da área de Interartes e Intermídias, além de Zygmunt Bauman, cujos postulados servirão de base para demonstrar que as mudanças feitas por Luhrmann, no hipotexto, tentam representar as características que delineiam a sociedade do século XXI.

As especificidades da mídia cinematográfica constituem, neste estudo, a primeira condicionante do filme O grande Gatsby (2013). Pensando, sobretudo, na visibilidade e no movimento, é imperativo que, na adaptação, sejam feitas alterações que priorizem essas características. Tudo o que é apenas sugerido, no romance, tem de adquirir forma, cor, volume e movimento para ser apresentado na grande tela. Os efeitos da impressão de nitidez que um texto literário pode expressar, por meio de linguagem figurada, ou do ritmo mais lento ou mais rápido, ditado pela escrita, são obtidos por outras ferramentas, quando o assunto é cinema. As equipes de produção de arte e de edição gerenciam processos complementares. No caso da visibilidade, escolhem-se os objetos que irão compor cada cena, em cada cenário. Já, no movimento, é estudado o aspecto durativo das ações, para definir o momento exato dos cortes, a quantidade deles e as noções de continuidade, pela sequência das cenas. Ao discutir os aspectos da imagem e do movimento, Christian Metz reflete sobre os efeitos do plano imagético: “O ‘segredo’ do cinema é também isto: injetar na irrealidade da imagem a realidade do movimento e, assim, atualizar o imaginário a um grau nunca dantes alcançado” (METZ, 1972, p. 28, ênfase no original). No filme de 2013, o movimento não foi escolha, já que se trata da arte cinematográfica, que se distingue da literatura principalmente por essa característica. Porém, Luhrmann optou pela tecnologia 3D, recurso comum hoje, mas que não foi bem visto pela crítica, na adaptação fílmica de um romance como O grande Gatsby. A escolha do diretor foi considerada simples “entretenimento”, ou uma “concessão à indústria cinematográfica” (MARTINS, 2013). Entretanto, é importante ressaltar que o uso do 3D potencializa profundidade e movimento, de modo a possibilitar maior envolvimento do espectador com as cenas.

Além da tecnologia 3D, a crítica foi unânime ao condenar outros “excessos” de Luhrmann, conforme já mencionado aqui. Porém, até mesmo os exageros são salutares, quando a proposta é investir na verossimilhança. Nesse ponto, fica estabelecida uma diferença fundamental: as cenas em si não precisavam parecer verossímeis. Era a atitude de Gatsby e o amor dele por Daisy que precisavam convencer o espectador e, para tanto, apenas o exagero era verossímil. Tudo em Gatsby é perfeito e grandioso e Baz Luhrmann faz uso disso para recriar, no filme, os eventos que vêm como consequência desse perfil do personagem. Metz faz menção ao exagero, quando comenta o efeito de realidade no cinema: “[…] o segredo do cinema consiste em colocar muitos índices de realidade […]. Imagens pobres demais não nutrem suficientemente o imaginário para que delas ele consiga extrair uma realidade” (METZ, 1972, p. 28, ênfase no original). Sendo assim, conclui-se que o diretor priorizou o detalhamento para obter o efeito de realidade e estabelecer perfeita sintonia com o perfil do protagonista.

No que diz respeito à visibilidade, a metalinguagem, no filme, foi ampliada, em decorrência da ênfase dada ao personagem Nick Carraway, outra opção do diretor que causou bastante polêmica. Nos extras da adaptação cinematográfica de 2013, Luhrmann comenta que a versão feita por ele focaliza em primeiro plano a relação entre Nick e Gatsby e que ele próprio considera que o filme resume a “experiência internalizada de Nick” (O GRANDE GATSBY, 2013), sobre o amigo, o amor de Jay por Daisy, a esperança de uma vida feliz ao lado dela e a frustração desse plano, que afetou menos a Jay, que morre à espera de Daisy, do que a Nick, que vê, depois da morte de Gatsby, o abandono e a solidão que sobraram àquele que ele julgava ser realmente “grande”.

No romance, a metalinguagem é um traço sutil, que se inicia com a narração subjetiva de Nick sobre a habilidade dele em guardar segredos e que, a certa altura, revela: “Somente Gatsby, o homem que empresta seu nome a este livro, se achava isento de minha reação […]” (FITZGERALD, 1980, p. 6, ênfase acrescentada). De fato, é apenas esse comentário que sugere, de modo explícito, o recurso metalinguístico no hipotexto. Em contrapartida, no filme de Luhrmann, essa função da linguagem é mostrada reiteradamente, do início ao fim da história, razão suficiente para que a crítica mostrasse sua indignação: “Luhrmann retira qualquer subtexto e sutileza, tudo é muito bem explicado pela narração em off de Nick Carraway […]. […] em seu esforço de didatismo Luhrmann usa recursos feios e clichês, como fazer letras aparecerem na tela […]” (SINAY, 2014). No aspecto mais geral, a visibilidade pode se prestar a esse excesso de “explicação” e “didatismo”, mas, com base no depoimento do diretor, nos extras do filme, não resta dúvida de que foi dado maior espaço a esse recurso, em razão de Nick ter ganhado mais importância na história de 2013. O filme começa com Nick, perturbado, falando de Gatsby a um psiquiatra. O médico, então, pede que ele escreva no Diário do paciente e é nesse momento que se estabelece a metalinguagem, instituindo Nick Carraway como personagem, narrador e autor do livro O grande Gatsby. Isso acontece após treze minutos de filme. Gatsby, Tom, Daisy e também a sofisticação do espaço e dos personagens já tinham sido apresentados e, quando Nick é oficializado como autor da história, ele escreve dando continuidade ao que já tinha sido mostrado no filme e passa a descrever a ferrovia que ligava West Egg a Nova Iorque.

Coerente com a ampliação de Nick e do recurso metalinguístico no filme, Luhrmann aumenta o número de referências à relação do personagem com a literatura. No texto de Fitzgerald, Nick lia muito e era “um tanto dado à literatura”, tendo publicado, alguns anos antes, “uma série de artigos muito sérios e óbvios para a Yale News” (FITZGERALD, 1980, p. 9). Na versão cinematográfica de 2013, Tom sempre se refere ao gosto de Nick pelos livros em tom de brincadeira, chamando-o de Shakespeare. Em certas ocasiões, Tom chega a apresentar o primo como escritor. Além disso, no quarto de Nick há uma pilha de clássicos da literatura mundial. Em dados momentos, a escrita do personagem, em forma manuscrita ou datilografada, se sobrepõe às imagens ou aparece ao fundo (Fig. 1, à esq.), de modo a tornar concretas aquelas palavras. Por fim, há a referência final, quando Nick termina o livro, intitulando-o, no primeiro momento, apenas Gatsby, mas depois optando pela inclusão da expressão “the great” (Fig. 1, à dir.).

 

A intermidialidade em O Grande Gatsby

 

O destaque dado por Baz Luhrmann a Nick e à tríplice função dele na narrativa (personagem, narrador e autor) é inerente ao processo de adaptação. Essa questão relaciona intrinsecamente perspectiva, interpretação e (co)autoria, já que o diretor oferece novamente a história literária, mas vista de outro ângulo. Portanto, na versão de 2013, é maior a importância do final da história, em que Nick, sozinho, lamenta a morte de Gatsby e busca amigos e conhecidos para acompanhar o enterro. Com base nisso, o início da história e o contorno metalinguístico da obra de Fitzgerald foram retrabalhados. Para o teórico Robert Stam, esse tipo de alteração é natural, considerando-se a intermidialidade:

Muitos cineastas, nesse mesmo espírito, “dinamizam” o romance focando em certos personagens e eventos em detrimento de outros. […]. Uma narratologia comparativa da adaptação também examina as formas como as adaptações adicionam, eliminam ou condensam personagens. […]. O problema que importa para os estudos da adaptação é que princípio guia o processo de seleção ou “triagem” quando um romance está sendo adaptado? Qual é o “sentido” dessas alterações? (STAM, 2006, p. 40-41, ênfase no original)

A reflexão de Stam pode ser relacionada à outra mudança realizada por Luhrmann. Focalizando apenas o final da história, percebe-se que a ampliação de Nick se dá proporcionalmente à condensação das ações de Wilson, depois do atropelamento de Myrtle, e isso corresponde ao projeto do diretor, de contar a história de Nick e Gatsby. No final do livro, Wilson é personagem frequente, em mais ou menos trinta páginas, que narram a desconfiança dele sobre o fato de Tom ser o amante de Myrtle, a busca dele pelo dono do carro, as lembranças das ausências da esposa, a conclusão de que Gatsby não era apenas o assassino, mas também o amante de Myrtle, e o desfecho trágico, em que Wilson mata Jay e depois se mata. No final da adaptação de Luhrmann, tudo isso é abreviado de modo intenso. A densidade psicológica que delineia o personagem de George Wilson, no livro, e que faz o leitor acompanhar toda a linha de raciocínio que ele segue, até decidir matar Gatsby, é anulada. Do mesmo modo, são condensados os episódios narrados no romance, após a morte de Jay, e que ocupam outras vinte páginas. Baz Luhrmann comenta essas alterações, nos extras do filme, afirmando que muitos fatos acabam por diluir a morte de Gatsby e reduzir o impacto desse fato sobre Nick. Inclusive, o acúmulo de informações, ao final do enredo, tem funções completamente distintas: o livro é feito para se ler em partes, enquanto o filme é apresentado de forma contínua.

 

 

REFERÊNCIAS
FITZGERALD, Francis Scott Key. O grande Gatsby. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
MARTINS, Jade. Soterrado pelo luxo. Jornal A notícia. Caderno Anexo Ideias. Joinville, s/p, 22 e 23 de jun. 2013.
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.
O GRANDE GATSBY. Direção de Baz Luhrmann. EUA/Austrália: Bazmark/Red Wagon Entertainment; Warner Bros. Pictures, 2013. 1 DVD (142 min); son.
SINAY, Isadora. ‘O Grande Gatsby’ e o exagero de Baz Luhrmann. Disponível em: http://www.posfacio.com.br/2013/06/07/critica-o-grande-gastby-e-o-exagero-de-baz-luhrmann/. Acesso em: 17 set. 2014.
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Revista Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 51, p. 19-53, jul./dez. 2006.
WITTMANN, Isabel. O Grande Gatsby (The Great Gatsby / 1974 e 2013). Disponível em: http://estantedasala.wordpress.com/2013/06/14/o-grande-gatsby/. Acesso em: 17 set. 2014.

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