Simone de Beauvoir, As mulheres também choram

Frank Wan

Neste pequeno ensaio exponho rapidamente algumas impressões e reflexões da leitura dos surpreendentes Cahiers de Jeunesse de Simone de Beauvoir e teço algumas considerações livres em torno do filme Les Amants du Flore (Os Amantes do Café Flore).

Para quem tenha, de alguma forma, sido exposto ao ícone de Simone de Beauvoir, tenha lido algum dos seus livros ou conheça alguma parte da sua biografia, a leitura dos Diários de Juventude (Cahiers de Jeunesse) são uma surpresa total: a mulher adulta, dura, fria e hierática, é precedida por uma menina hipersensível, socialmente isolada, chorona, católica militante, apaixonada, crente no amor de folhetim. Apesar de a jovem autora dos Diários ter uma outra modalidade de pensamento e atitude perante o mundo totalmente diferente da adulta posterior, percebe-se, quase a cada página, que estamos na presença de um ser extraordinário: a capacidade de leitura e problematização do mundo que a rodeia, as sucessivas leituras e escrita compulsivas, a finura de análise psicossocial, uma capacidade de trabalho intelectual absolutamente anormal e uma extrema autoexigência.

Deixo para os ociosos o exercício de comparação com a obra de Sartre, deixo para os bem-pensantes as afirmações pretensiosas que Simone de Beauvoir vale mais como ícone, biografia e personalidade do que como escritora, deixo para os novos inquisidores políticos os julgamentos descontextualizados e anacrónicos das suas opções políticas, limito-me de forma simples a chamar a atenção para os Diários e suas múltiplas surpresas nesta mulher, a todos os títulos, notável.

De alguma forma, nos Diários, assistimos a uma metamorfose: a menina católica, burguesa, egocêntrica e desconhecida vai se inventando a si mesma, “Aceito a grande aventura de ser eu” (J’accepte la grande aventure d´être moi), e a mulher vulcão vai, a cada dia, a cada página, a cada ação no mundo, tenaz e vertiginosamente entrar numa lenta e esmagadora erupção. Simone não é um produto do meio, é uma invenção, uma construção dela mesma, um atrevimento feminino de perturbação do mundo.

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Os Diários têm uma mistura de agenda, com listas de leituras feitas e por fazer, de notação de acontecimentos e reflexões e foram escritos entre os 18 e os 22 anos. São notações pessoais, não visavam ser publicados, só muito recentemente o foram e a figura de Sartre aparece apenas no fim com o pequeno peso que tinha na época na vida da autora. As reflexões giram em torno das pessoas que a rodeiam, dos acontecimentos académicos, filosóficos, literários, etc., mas, as reflexões que serão centrais para a evolução futura de Simone de Beauvoir são as que são feitas em torno das mulheres que a rodeiam e, em geral, as mulheres da sua época, do amor e da religião.

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Embora os Diários só muito recentemente tenham sido publicados, o que é natural, uma vez que não foram escritos para serem lidos em público, são os primeiros textos da autora e têm um teor demasiado pessoal, é neles que está plasmada a eclosão da escritora e pensadora sideral que Simone se tornou. Simone descobre que a escrita a pode ajudar a desenhar-se e a sintetizar as diversas forças poderosas que sente em si. Simone descobre a escrita e descobre-se através da escrita. Os Diários foram escritos em folhas quadriculadas e a escrita é marcadamente rápida, inclinada para a frente e deslizante, Simone tem pressa: é a escrita de uma jovem ávida!!

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Na relação com tudo o que é do plano feminino, Simone constrói-se a partir de duas coisas: o carisma pessoal ou a capacidade que desde cedo reconhece em si de influenciar, sobretudo, as mulheres que estão à sua volta e o retrato profundamente negativo que destas faz. Desde muito cedo percebe que “não é como as outras” que, na sua visão, são desinteressadas, desinteressantes, ocas, burguesas, frívolas, gastando toda a sua energia na preservação dos seus pequenos confortos, amenidades e sem qualquer capacidade de envolvimento sério em questões de cultura ou ciência, no fundo, ao contrário de Simone, não querem perturbar o seu mundinho familiar e social, limitam-se a repetir chavões e deixam-se facilmente manipular por falta de capacidade de articulação e coragem humana. Obviamente, percebe desde cedo a armadilha do casamento: os sonhos da mulher estão todos reféns do casamento burguês. Gastar a juventude totalmente centradas em múltiplos flertes inconsequentes, depois arranjar um marido conveniente para apresentar à família, sonhar com o vestido branco, o êxtase da maternidade e o resto da vida passa por coser as meias do marido e passear bebés. Rapidamente percebe que mesmo os adultos à sua volta, embora ela diga sempre o contrário, a levam a sério, de alguma forma temem-na e as mulheres gravitam em torno dela: Simone é mulher, mas não é como as outras. “Sentir a influência que tenho sobre a Henriette, a Zaza e outras.” (Sentir l’influence que je prends sur Henriette, Zaza, et d’autres… – Novembro de 1926). Mais tarde, o carisma e capacidade de influenciar pessoas ao seu redor misturar-se-á com o carisma de Sartre o que lhes vai valer, da parte dos críticos, a fama de manipuladores e terem utilizado este carisma não apenas para fins políticos e/ou culturais, mas também para algumas perversidades sexuais.

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Desde muito jovem participava nas “Equipas” (um movimento católico mais ou menos centrado na mobilização dos jovens) com grande entusiasmo e empenho. Nos Diários acompanhamos o afastamento deste movimento e de toda a filosofia que a ele subjaz. Vai chegar ao ponto de afirmar que as “Equipas” não passam de grupos de encontros e conversetas de meninas ociosas e o catolicismo, pelo menos nesta versão quase escuteira, não atinge nada de profundo do Ser. Até ao dia que, para descrever as “Equipas”, utiliza o termo “medíocre”, o que marca o canto do cisne da Simone de Beauvoir católica.

Amorosamente, a maioria dos Diários são preenchidos com a paixão de formato romântico-adolescente pelo primo Jacques-Charles Champigneulle, relação que durará, grosso modo, até 1929, ano em que descobre que este se casou por dinheiro. Para muitos, este é o período mais interessante de Simone de Beauvoir, posteriormente vai envolver-se na mítica relação com Sartre e tornar-se, humanamente, um pouco menos densa e muito mais tática, o que leva alguns críticos a afirmar com alguma piada que “o inferno era o outro” (o Sartre).

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O filme “Os amantes do café Flore” pretende retratar, de uma forma geral, o trajeto desde o primeiro encontro de Simone e Sartre, obviamente obedecendo aos ditames da linguagem cinematográfica. Tudo na arte é um conjunto de opções e a produção escolheu uns pontos marcantes do percurso dos dois, privilegiando, naturalmente, cinema oblige, as relações amorosas – todo o cinema moderno tem de ter cenas de sexo e já estamos habituados aos Inspetores chefes top model com 19 anos ou cirurgiãs chefe com 17 anos e 2 doutoramentos.

O filme, mesmo para quem não conheça nada da época e dos personagens dá uma excelente ideia do evoluir de algum dos personagens, tem a fragilidade de não mostrar algumas nuances decisivas da personalidade de Simone: no filme, aquele carater sério, vincado, decidido e pesado que a escritora tem na juventude prolonga-se pela vida ficcionada no filme – e isso não corresponde, de todo, à verdade, aliás, alguma grande leveza que a vida de Simone vai adquirir, nomeadamente o ter desistido de não querer ser feliz, o deve, sem qualquer dúvida a Sartre.

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Digo, com algum atrevimento, que o filme retrata melhor o Sartre real do que todos os vídeos que se possam ver por aí com o próprio. A pequena cena de interação com os alunos na escola corresponde rigorosamente ao que todos os alunos contam dele. Nos vídeos que ficaram com entrevistas ou comunicações de Sartre, este assume sempre um certo papel “sério” que, de alguma forma, se esperava dele por se ter tornado o ícone do “filósofo francês”, essa era a personalidade dele em público e a trabalhar sozinho, mas, nos corredores das faculdades, entre amigos, nos jantares, etc., todos os que privaram com ele o confirmam: Sartre era sempre o palhaço, o stand up comedian, o contador de anedotas, o beberrão.

O filme, mais que retratar as personagens, retrata a imagem que tem ficado como herança dos dois, sobretudo, junto do grande público mais sensível a imagens recebidas do que a cronologias e nuances dinâmicas das personalidades. Sartre é apresentado como o autor e ideólogo das “relações abertas” e dos “amores contingentes” a que Simone adere passivamente: nada mais errado e afastado da realidade. Reputo isto de uma mentira inútil porque apresentar alguma versão mais aproximada da realidade não alteraria em nada a estrutura do filme.

 

 

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