Paul Bowles, Um chá no deserto do nosso descontentamento

Frank Wan

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Poucas vezes a humanidade viu tanto talento condensado num único homem, Paul Bowles foi um tradutor excepcional, grande músico, musicólogo e compositor, mas é como escritor que fica na história das artes. Apesar da grande influência que teve sobre muitos músicos ainda ativos, hoje é uma figura musicalmente esquecida, como são esquecidos todos os que não participam na cultura de massa.

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The sheltering sky, editado em 1949, traduzido em Portugal por O Céu que nos protege e no Brasil por Um chá no deserto, é o romance que lhe trará notoriedade: foi uma obra bem recebida pela crítica e um grande sucesso de vendas para o qual contribui a adaptação para cinema de Bernardo Bertolucci.

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A narrativa tem uma estrutura bastante simples: um casal de New York enfrenta os habituais problemas conjugais e decide fazer uma viagem ao Norte de África acompanhado por um amigo. A simplicidade da narrativa, densidade dramática e filosófica, a existência de poucos cenários e personagens, leva muitos críticos a facilmente classificá-lo como um “romance existencialista” na linha da obra de Camus ou Sartre, entre outros.

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Numa leitura mais profunda, as muitas simplicidades aparentes dão lugar a labirintos simbólicos e emocionais. O deserto revela-se não apenas como um cenário de fundo passivo, mas como todo um personagem, tema e tela onde vão ser projetadas toda a paleta de crises: do casal em particular até às crises múltiplas do mundo moderno pós-Segunda Guerra Mundial. New York é uma cidade rica, cheia, barulhenta, consumista e moderna, mas não tem respostas para o “deserto” interior da vida do casal, nem respostas existenciais e assim nasce a atração pelo oposto: o deserto, o silêncio, a carência, a pobreza. O deserto real, fictício e imaginário vai revelar o que está escondido no mais profundo da alma humana.

Este exílio voluntário e esta viagem reveladora espelha, sem sombra de dúvida, a opção de vida de Paul Bowles: apesar de educado na cidade de New York decide radicar-se em Tânger, no Norte de Marrocos, onde viveu o resto da vida, tornando-se, assim, uma figura clássica do artista americano emigrado e a sua casa um ponto de referência para a vida cultural e alternativa da época.

Numa abordagem simples facilmente se classifica o romance como Literatura de Viagem, mas mais do que a descrição das experiências particulares ou descobertas, temos toda uma reflexão alargada acerca da viagem e da filosofia da viagem, totalmente ao arrepio do mundo consumista filho da Grande Guerra em que a viagem turística vai tornar-se um objeto de consumo compulsivo.

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A reflexão em torno da temática da viagem abre com a tirada de Port “Ele não se via a si mesmo como um turista, mas sim como um viajante” (He did not think of himself as a tourist; he was a traveller). O viajante permite que os lugares e as viagens desafiem os seus padrões de conhecimento e os seus pressupostos estéticos, sociais e humanos, já o turista apenas colhe impressões e, normalmente, julga a partir dos seus padrões e pressupostos, tudo o que toca torna-se apenas objeto de comparação com imagens pré-estabelecidas rejeitando tudo o que “não lhe agrada”. Os personagens fazem uma viagem no deserto ou, como Paul Bowles afirma, nos dois desertos, o exterior, sem vetores de orientação, usando a linguagem deleuziana e o interior, o deserto do espírito, do vazio existencial.

Somos sempre viajantes, o homem constitui-se na viagem, o nomadismo é o estado natural do homem, quando as circunstâncias exteriores, sociais ou pessoais, não permitem a viagem, o homem viaja na imaginação e no desejo, procuramos sempre alguma coisa que está longe, mas mantemos sempre a tensão entre o desejo de partir e a saudade da estabilidade caseira. No coração do homem, em segredo ou expressamente, em algum lugar longínquo, por vezes, basta que o lugar seja longe para que seja bom, reside a promessa de uma felicidade futura, já que no nosso perímetro vital só temos o aborrecimento da repetição e a mediocridade previsível e tantas vezes experimentada.

Curiosamente, o casal, a par do deserto como paisagem e África como destino, escolhe Tunner, um terceiro para os acompanhar e Tunner tem muitas características típicas do turista: agenda-se para preencher as horas da viagem, mantém-se ocupado como querendo “aproveitar” a viagem e pretende seduzir Kit – no mundo moderno a viagem turística está associada à viagem com companhia sexual ou busca de destinos de turismo sexual, no mínimo, há sempre a promessa velada de atuar fantasias recalcadas que o cenário familiar da sua cidade/local não permite atuar.. Kit acredita que, estratégia muito eficaz com as mulheres fúteis, com a dose certa de champagne, novos cenários, entusiasmo de viagem e o seu charme pessoal conseguirá seduzir Kit: é um turista típico em busca de aventura.

Se Tunner é um turista e Port um viajante, Kit é uma mulher em busca de si mesma, alguma coisa entre os dois extremos e é por isso que a segunda parte do livro é ocupada com a longa estadia de Kit já fora da égide dos polos masculinos que trouxe de New York evoluindo no deserto com pessoas do deserto.

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O Deserto do nosso descontentamento.

No deserto tudo perde sentido porque não existem pontos de referência, nem mapas, nem caminhos que orientem o viandante, é o lugar por excelência, reutilizando a linguagem deleuziana, da “desterritorialização”, é um espaço sem conceitos espaciais e, portanto, não permite a construção/apropriação civilizacional: não existe nada mais “selvagem” e cru que o deserto.

Estranhamente, o casal vai procurar manter a frágil vida da relação no deserto, local onde, por definição, nada de biológico sobrevive e tudo desaparece: desaparece a identidade individual, a identidade do casal, as categorias cosmopolitas, os hábitos, as redes de sustentação sociais. Port e Kit procuram salvar a relação, salvar-se a si mesmos e salvar a Civilização Ocidental.

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O deserto e a viagem são o espaço onde se pode ganhar ou perder, é isso que o “turismo” evita: ninguém se perde. Port perde, simbolicamente, o passaporte e a partir daí a sua identidade psicológica e física precipitam-se para a morte. A perda de Port é um ganho: gradualmente vão fundir-se a vida e a morte, à medida que perde a vida, vai ganhando uma Kit cuidadora: muitas vezes é na doença final que se ganha o amor que se esperou toda a vida de quem estava do nosso lado, ganhando assim um “céu protetor”, é o céu africano que ele contempla no final e que lhe dá a sensação de ter conseguido o que pretendia e chegado ao seu destino. Os desertos e os céus são todos iguais e são sempre diferentes.

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Fica assim completa a trindade de Paul Bowles: fez da sua vida uma eterna viagem a África abandonando a barulhenta New York, traduziu a música e as línguas fazendo um magnífica ponte entre “civilizações”; fez todo o turismo que lhe foi possível…e perdeu-se como uma mulher que se procura e funde com o deserto e as gentes…
… terminado o livro, fica o eco da Sinfonia do Deserto…

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