H SEM Q: A DILUIÇÃO DO ESPAÇO-TEMPO

Verônica Daniel Kobs

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O texto A fuga, de Aline Daka, é apresentada como uma história em quadrinhos. Publicada na revista Helena n. 10, com data de janeiro de 2019, a HQ chama atenção pela ausência dos requadros. Por essa razão, e para distinguir essa produção daquelas mais convencionais, resolvi chamá-la de “H sem Q”, ou seja: História sem Quadrinhos. Disponível em formato impresso e on-line, a narrativa será aqui analisada com base nos conceitos do mestre Will Eisner. Mas atenção: se você gosta do gênero, dê preferência à versão impressa de A fuga, pois no texto eletrônico a sequência é vertical (e não horizontal) e há um espaço em branco excessivo no canto esquerdo das imagens. Considerando o apelo visual de uma HQ (ou de uma H sem Q, nesse caso), essas diferenças são pontos negativos, alterando significativamente as cenas que compõem a narrativa.

Não sou uma leitora assídua de HQs e talvez por isso o texto de Daka tenha me chamado atenção. Decidi, portanto, começar lendo a obra de quem entende do assunto: Will Eisner. A primeira coisa que descobri é que, apesar de esse autor considerar o requadro um elemento inerente à HQ, devido ao auxílio que o recurso fornece para a organização do texto, a ausência dos quadrinhos não é uma estratégia nova. A H sem Q já podia ser encontrada na década de 1940. Porém, a retomada desse tipo de texto hoje, em pleno século XXI, é mais do que uma opção estética. Trata-se de um modo de o autor tentar refletir na arte, de modo consciente ou não, o perfil da sociedade contemporânea.

Diversos autores mencionam a importância do tempo e do espaço em nossos dias e são justamente esses dois fatores que Aline Daka privilegia em seu texto, quando decide não fazer uso do requadro. O resultado desse processo é que a unidade espaço-tempo fica relativizada, diluída e desconstruída, sem, entretanto, comprometer a sequência narrativa.

A fuga é predominantemente visual, sem palavras: “A ausência de qualquer diálogo para reforçar a ação serve para demonstrar a viabilidade de imagens extraídas da experiência comum” (EISNER, 2010, p. 16). Observe como isso se concretiza no texto em análise:

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Figura 1: A queda da personagem durante a fuga (DAKA, 2019, p. 173)

 

Sem nenhum requadro, o corpo da personagem principal é mostrado em posições diferentes, invadindo os limites invisíveis das outras imagens, porque os traços responsáveis pela contenção inexistem na forma. Tecnicamente: “O ato de enquadrar ou emoldurar a ação não só define seu perímetro, mas estabelece a posição do leitor em relação à cena e indica a duração do evento” (EISNER, 2010, p. 28). No texto de Aline Daka, tais definições não ocorrem. As formas interagem, livres na página, por vezes quase sobrepostas umas às outras. Em outras palavras: diluem-se as noções de tempo, espaço e sequência narrativa. Outro efeito pode ser explicado novamente com base nos ensinamentos de Eisner, que afirma: “A ausência do requadro tem o intuito de expressar espaço ilimitado. […] e apoia a narrativa contribuindo com a sua atmosfera” (EISNER, 2010, p. 47).

Além disso, percebemos, nas cenas acima, que o rosto nunca é mostrado, consolidando mais uma ruptura em relação ao formato tradicional de HQ: “Na maioria dos livros convencionais sobre anatomia humana a cabeça é tratada como um acessório. Na arte das histórias em quadrinhos, é essa parte da anatomia que desperta maior atenção e envolvimento” (EISNER, 2010, p. 109). Apesar disso, em outros momentos, Aline Daka segue algumas características básicas do gênero: “[…] os gestos devem ser exagerados para serem lidos” (EISNER, 2010, p. 22). De fato, a narrativa acumula ações, gestos e posições do corpo da protagonista. Consolidando esse aspecto, a autora também explora o timing, de modo acertado e eficiente. Diferentemente do tempo, o timing é privilegiado quando, em uma ação simples “o resultado (apenas) é prolongado para realçar a emoção” (EISNER, 2010, p. 25, grifo nosso). A figura 1 mostra bem a utilização desse recurso, ao apresentar o corpo da personagem em cinco poses diferentes, depois da queda.

No texto, como já mencionamos, não há diálogos. Os únicos elementos verbais que aparecem são o título, um sinal de pontuação e a onomatopeia abaixo, que ocupa uma página inteira:

 

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Figura 2: O rescurso da onomatopeia (DAKA, 2019, p. 172)

 

Conforme Eisner: “Palavras como ‘BANG’ são usadas para acrescentar sons, uma dimensão de que os meios impressos não dispõem” (EISNER, 2010, p. 18, grifo do autor). O último signo verbal usado por Daka é uma pontuação, incluída em um círculo preto (espécie de estilização dos tradicionais balões das HQs):

 

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Figura 3: O texto lacunar (DAKA, 2019, p. 177)

 

A cena reproduzida na figura 3, embora mostre a personagem já em pé, recuperada da queda, recusa-se a direcionar a interpretação do leitor. A cena é aberta e representa um convite ao público para completar o significado da página e da história como um todo. Aliás, esse recurso é salutar, porque mantém a coerência iniciada pelas demais ausências (de diálogos e de palavras), que multiplicam os desafios apresentados ao receptor: “As imagens sem palavras, embora aparentemente representem uma forma mais primitiva de narrativa gráfica, na verdade exigem certo refinamento por parte do leitor […]” (EISNER, 2010, p. 24).

A tradição das HQs conecta tempo e espaço, razão pela qual esse tipo de arte mistura a inércia e a espacialidade da escultura e da pintura à temporalidade da literatura. “A representação dos elementos dentro do quadrinho, a disposição das imagens dentro deles e a sua relação e associação com as outras imagens da sequência são a ‘gramática’ básica a partir da qual se constrói a narrativa” (EISNER, 2010, p. 39, grifo do autor). Porém, no texto A fuga, Aline Daka retoma modelos não convencionais, para nos lembrar de coisas bastante importantes, quando o assunto é arte. A primeira delas é que aquilo que parece novo já vem de longa data. A segunda surge em forma de pergunta: “Por que fazer sempre igual aquilo que, um dia, alguém ousou fazer diferente?” E, por fim, somos confrontados com a terceira ideia, que aqui assume ares de conclusão do texto, apesar de ser apenas uma constatação óbvia e ululante: a arte é social e nos representa, de modo fracionado (mas verdadeiro), por mais que a obra pareça incoerente. No fim das contas, estranhos somos nós, correndo contra o tempo, no espaço indefinido e disputado da atualidade — nossa aldeia global.

 

REFERÊNCIAS

DAKA, A. A fuga. Helena, n. 10, Curitiba, 10 jan. 2019, p. 168-177. [O texto está disponível também no link: <http://www.helena.pr.gov.br/2019/01/83/A-fuga.html>.]

EISNER, W. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: WMF Martins, 2010.

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