A TRANSMUTAÇÃO DO VÍRUS ZUMBI NAS SÉRIES ON-LINE

Verônica Daniel Kobs

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Desde o início do século XXI, assistimos à retomada e à ampliação da representação dos zumbis, nas mais diversas áreas de nossa sociedade. Diante desse novo panorama, é imprescindível buscarmos hipóteses que nos ajudem a entender esse fenômeno. De acordo com a revista Superinteressante:

[…] os atentados de 11 de setembro de 2001 podem estar por trás dessa “Renascença Zumbi”: de repente, para o público ocidental, o fim do mundo nas mãos de forças assassinas voltava a ser um conceito plausível. Seja como for, os últimos anos viram algo em torno de 30 filmes sobre mortos-vivos a cada 12 meses, uma média sem precedentes […]. (SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 38, ênfase no original)

Entre tantas histórias, que chamaremos aqui de primeira fase dessa retomada, merecem destaque a minissérie The walking dead (EUA, 2010), o filme Guerra mundial Z (EUA, 2013) e Resident evil (EUA, 2002), série baseada em um jogo e que já conta com seis longas-metragens. Nesses exemplos, a comunidade era ameaçada por zumbis e, para protegê-la, os humanos tinham de aniquilar as criaturas. Por essa razão, os zumbis potencializam a violência do homem contra o homem, na tentativa de expressar uma espécie de “vazio simbólico” (LEVERETTE, 2008; MOREMAN; RUSHTON, 2011). De fato, esse percurso dos zumbis nas produções audiovisuais (que aqui dividimos em fases) resulta das transformações sociais que experimentamos, neste início de século. Aliás, a famosa série The walking dead está apresentando inegáveis sinais de desgaste há algum tempo: “Em seu auge, registrado na 5ª temporada, ‘The Walking Dead’ chegou a ser vista por 17,29 milhões de telespectadores” (PLASSE, 2019). Desde então, a atração continua a perder audiência: “O episódio mais recente, exibido no domingo (17/2) [de 2019], foi visto por 4,52 milhões de telespectadores ao vivo nos Estados Unidos” (PLASSE, 2019).

Na segunda fase da retomada zumbi, é possível percebermos uma mudança de perspectiva na relação complexa que se estabelece entre humanos e zumbis. Diferentemente da minissérie e dos filmes citados acima, Meu namorado é um zumbi (EUA, 2013) e Todo mundo quase morto (EUA, 2004) demonstram um atenuamento do que ficou conhecido como “Dia Z”, ou “Apocalipse zumbi”. As duas histórias apresentam o confronto e a matança, mas terminam com uma proposta de integração. Uma nova sociedade é forjada e o tão aclamado apocalipse não representa o fim do mundo, mas o começo de uma nova sociedade, que surge a partir da negociação das diferenças entre humanos e zumbis.

Porém, hoje, em uma terceira fase, três séries disponíveis no Netflix trazem novas mudanças. Estamos falando de Glitch (AUS, 2015), Santa Clarita diet (EUA, 2017) e Boneca russa (EUA, 2019). Evidentemente, as histórias “compartilham a obsessão pela morte, pelo morrer e pelo que vem depois”, afinal os zumbis continuam sendo “o pesadelo do além” (VIGNA, 2017, p. 64). Bauman considera a morte como símbolo máximo do desconhecido e a recorrência dela caracteriza-se como um processo humano e bastante comum: sempre que a ideia da morte surge, nas situações de medo e violência, acabamos por valorizar mais a vida:

A advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a vida dos mortais no curso correto – dotando-a de um propósito que torna preciosos todos os momentos vividos. (BAUMAN, 2008, p. 47)

A ansiedade que se abateu sobre o mundo, desde o atentado às torres gêmeas, permanece, razão pela qual os zumbis de hoje protagonizam o novo gótico:

Frequentemente observa-se que os ciclos de horror emergem em tempos de tensão social, e que o gênero é um dos meios pelo qual podem ser expressadas as ansiedades de uma era. (CARROLL, 1990, p. 207, tradução nossa)

O gótico sempre foi um barômetro das ansiedades que se manifestam em certa cultura, em um momento particular da história. (BRUHM, 2002, p. 260, tradução nossa)

Porém, quando comparamos as três fases da retomada zumbi, podemos afirmar que a transição entre elas é marcada por características representativas, mas bem distintas, delineando uma evolução e uma transmutação gradual. Passamos da segregação à integração, e depois para a inclusão:

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No primeiro momento da retomada, a exemplo do que ocorria em The walking dead, há dois grupos rivais (segregação) e o único objetivo é a luta pela sobrevivência dos humanos e a extinção dos zumbis. Já no segundo momento, como bem representa Meu namorado é um zumbi, os mortos-vivos são aceitos na sociedade (integração). Claro que eles ainda são considerados “diferentes”, mas passam por um momento de reabilitação (inclusive motora), contando, inclusive, com a ajuda dos humanos. Na terceira fase, como exemplifica a série Santa Clarita diet, os zumbis estão completamente inseridos na sociedade (inclusão). Na história, a protagonista Sheila Hammond (Drew Barrymore) é corretora de imóveis e moradora de um condomínio de alto padrão, em Santa Clarita (Los Angeles). Certo dia, ela passa mal e vomita uma gosma esverdeada. Logo depois, sentindo-se melhor, ela percebe os sintomas da transformação zumbi: vontade de comer carne crua, sangue negro e força extrema. Contudo, sua aparência continua a mesma.

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Em Glitch, James, um policial da pacata cidade de Yoorana, é chamado ao cemitério para atender a um chamado bastante incomum: os mortos estão saindo de suas covas. Entre eles, está Kate, ex-mulher de James, enfermeira que tinha morrido de câncer, alguns anos antes. Ao todo, sete mortos, que viveram em épocas diferentes, voltam à vida, na mesma noite. A partir de então, os novos zumbis passam por diversos conflitos: alguns tentam retomar a vida de antes, outros precisam resolver pendências que deixaram para trás e todos eles têm de lutar contra os zumbis do mal, que tentam restaurar a ordem que foi quebrada com a ressurreição inexplicável.

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Na história de Boneca russa, a protagonista, Nádia, é uma desenvolvedora de games que morre durante a festa de seu aniversário, na cidade de Nova Iorque. Porém, minutos depois de morrer, ela se vê em seu banheiro, no local da festa, e bem viva. A partir daí, ela revive sua morte, com variações. Não importa as mudanças que Nádia tenta fazer. Nada a impede de morrer (a exemplo da famosa série Premonição). Os episódios se sucedem e ela morre dezenas de vezes, como se estivesse presa em um inferno particular (tal como já apareceu nas séries Supernatural e American horror story).

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Com a transformação social apresentada nas séries da terceira fase, várias coisas também deixam de existir: não há mais o zumbi-monstro. Os mortos-vivos não andam se arrastando, nem grunhindo, não têm a pele verde ou decomposta e o cenário não é mais aquele apocalíptico. Sheila Hammond, de Santa Clarita diet, é desenvolta, bonita e inteligente; Kate, de Glitch, é jovem, sensual e com saúde (pois, desde que voltou à vida, está curada do câncer); e Nádia, de Boneca russa, é independente, batalhadora e disputada pelos homens. O cenário, nas três séries, é urbano, embora, em Glitch, haja uma atmosfera mais rural e interiorana. Além disso, as três histórias são cotidianas. Os personagens continuam trabalhando e levando suas vidas familiares de modo normal, enquanto a trama zumbi se desenvolve. Isso acentua o motivo pelo qual essas séries representam a inclusão dos mortos-vivos na sociedade comum. Outra coincidência está na descoberta dos iguais, ou seja: de novos zumbis. Dessa maneira, um grupo secreto de zumbis e simpatizantes vai se formando, em prol da resolução dos enigmas principais das séries: Por que eles morreram? E por que voltaram à vida?

No que se refere ao gênero, também houve mudança significativa. Nenhuma das séries dessa terceira fase utiliza o terror em sentido estrito. Pelo contrário: Santa Clarita diet e Boneca russa filiam-se à “‘zombédia’ (a comédia zumbi)” (SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 39, ênfase no original). Nesse aspecto, Glitch novamente é uma exceção, porque recusa tanto o terror quanto a comédia. A série australiana é um drama e por isso tem episódios mais longos, com quase o dobro do tempo das outras duas.

Apesar do atenuamento que a inclusão dos zumbis no mundo dos humanos sinaliza, ainda não é tempo de defendermos uma visão muito otimista. A inimizade e a luta entre grupos distintos continuam existindo. Em Santa Clarita diet, por exemplo, Sheila mata as pessoas que lhe causam problemas, para ter sempre um bom estoque de sangue e carne humana no freezer. Portanto, Bauman continua tendo razão, quando afirma que: “A globalização parece ter mais sucesso em aumentar o vigor da inimizade e da luta intercomunal do que em promover a coexistência pacífica das comunidades” (BAUMAN, 2001, p. 219). Em Glitch, há até um muro invisível, que mantém os zumbis prisioneiros em um território que vai se reduzindo cada vez mais, à medida que a história se desenvolve. Além disso, a trama conta com zumbis antagonistas, resultantes da fusão de dois tipos já conhecidos na mitologia dos mortos-vivos: o ro-lang, da cultura tibetana, definido como “um espírito malévolo que consegue possuir o corpo de um defunto antes que ele seja sepultado” (SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 17); e o ghûl, lendário monstro árabe, caracterizado como um cadáver reanimado, que se alimenta de carne de pessoas vivas e mortas e que é capaz de assumir a identidade e a aparência de suas vítimas (Cf. SUPERINTERESSANTE, 2012, p. 15-16).

Em outra perspectiva, a inclusão que identificamos na terceira fase da retomada zumbi pode indicar uma ameaça ainda maior, afinal os mortos-vivos não ficam mais à margem, fora da cidade, à espreita. Eles estão no meio de nós. Mais do que isso: eles são como nós e podem estar em todos os lugares (em casa, no trabalho, no condomínio ou na escola).

Mas não sejamos assim tão pessimistas… Temos de levar em conta o sinal auspicioso da inclusão. Sendo assim, analisando esse contexto de modo positivo, podemos compreender a renascença zumbi como se fosse uma segunda chance: de arrumar o que está errado, de viver mais intensamente, de fazer revelações, de perdoar e de ser perdoado. Assim, como a protagonista de Boneca russa, apesar de os novos zumbis morrerem diariamente, eles também renascem, e assim vão vivendo, até que suas sete vidas se esgotem completamente.

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Seja qual for a nossa escolha: acreditar na visão mais otimista ou naquela em que são privilegiados o pessimismo e o conflito, de modo declarado ou sorrateiro, parece que as duas opções convivem bem, desde o início da era cristã:

Disse-lhe Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; […]”. (BIBLIA ON, João 11. 25)

Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados. (BÍBLIA ON, João 5. 28-29)

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
_____. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BÍBLIA ON. Versículos de ressurreição. Disponível em: <https://www.bibliaon.com/ressurreicao/>. Acesso em: 1 mar. 2019.
BONECA RUSSA. Direção: Jamie Babbit, Natasha Lyonne e Leslye Haedland. EUA, 2019. Natasha Lyonne, Amy Poehler e Leslye Haedland; Netflix (1 temporada).
BRUHM, S. The contemporary Gothic: why we need it. In: HOGLE. J. E. (Ed.). The Cambridge Companion to Gothic Fiction. London: Cambridge University, 2002, p. 259-276.
CARROLL, N. The philosophy of horror or paradoxes of the heart. New York; London: Routledge, 1990.
GLITCH. Direção: Emma Freeman. AUS, 2015. Matchbox Pictures; Netflix (2 temporadas).
LEVERETTE, M. et al. Zombie culture: autopsies of the living dead. Plymouth: Scarecrow Press, 2008.
MOREMAN, C. M.; RUSHTON, C. J. (Eds.). Zombies are us: essays on the humanity of the walking dead. Jefferson: McFarland & Company, 2011.
NOGUEIRA, R. W. Formas de discriminação. Acesso à justiça para pessoas com deficiência. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2012-nov-30/roberto-nogueira-acesso-justica-pessoas-deficiencia>. Acesso em: 16 abr. 2014.
PLASSE, M. Audiência de The Walking Dead despenca e atinge pior nível da série. Disponível em: <https://www.msn.com/pt-br/tv/noticias/audi%c3%aancia-de-the-walking-dead-despenca-e-atinge-pior-n%c3%advel-da-s%c3%a9rie/ar-BBTRCm3?ocid=spartandhp> . Acesso em: 23 fev. 2019.
SANTA CLARITA DIET. Direção: Victor Fresco. EUA, 2017. Kapital Entertainment, KatCo, Flower Films, Garfield Grove e Olybomb Entertainment; Netflix (2 temporadas).
SUPERINTERESSANTE. Zumbis: a ciência, a história e a cultura pop por trás do fenômeno. São Paulo: Abril, 2012.
VIGNA, P. Tudo sobre The walking dead. Rio de Janeiro: Pixel, 2017.

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