Sexo, mentiras e Ovídio (tape)

Frank Wan

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Do vasto cemitério literário latino onde tantos mortos repousam no esquecimento, Ovídio é dos poucos que sobrevive. A Arte de Amar e as Metamorfoses dar-lhe-iam sempre um lugar em qualquer panteão da Literatura e, ao imenso talento, acrescenta-se uma biografia romanesca e um icónico exílio.
Neste pequeno ensaio, a par de uma sintética biografia, exponho de forma elíptica os temas e estrutura de algumas obras de Ovídeo: o Ars Amatoria, Amores, as epístolas Tristia e Epistulae ex Ponto, as Metamorfoses e encerro com o Remedia Amoris.

 

A biografia é fácil de resumir: nasce perto da data do famigerado assassinato de Júlio Cesar, a sua vida atravessa a transição da República para o Império, entretanto Augusto, que terá um papel decisivo no seu destino, chega ao poder e morre pouco depois do imperador.

Ars Amatoria e Amores

Começo por fazer uma rápida análise simultânea ao Ars amatoria (Arte de amar) e aos Amores. Obviamente que o sexo, em termos editoriais, vende sempre e, por vezes, quanto mais vulgar e mais cru, mais vende, não é o caso, a Arte de amar é uma espécie de iniciação ou didática do amor e da sedução – duas artes bem diferentes. Escrito em dísticos elegíacos e recorrendo abundantemente à mitologia vai rapidamente juntar-se à prateleira Literária dos grandes textos eróticos: Kama Sutra, o Banquete de Platão, o Satyricon de Petrónio ou os Jardins Perfumados.

 

Diria, sem pejo, que o livro é marcadamente sexual, o “amor” é visto quase exclusivamente na sua dimensão lúdica ou de prazer. Obviamente, não se trata de um levantamento laboratorial da dinâmica das relações, trata-se de um divertimento poético ou literário, de um amor cantado, mas é-o na perspetiva do encontro físico dos corpos e na fulguração exultante dos sentidos.

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Quer os Amores e, em grande medida, a Arte de amar, mais do que livros sobre o amor, são livros sobre o amor sexual no âmbito da traição, tornam-se assim, um autêntico manual da traição. A traição exige toda uma arte de engano, de ilusão, de contar histórias a uns e outros sem que ninguém descubra a verdade, de uso de máscaras, de estratégias e há pessoas que são absolutamente geniais na arte de trair o cônjuge e até, por arrasto, de trair os sucessivos amantes em cadeia, por vezes durante anos, mantendo a máscara burguesa do seu papel social.

De alguma forma, este investimento literário no amor “imoral” era também uma forma de “manifesto” contra Augusto, um manifesto a favor do adultério e dos amores adúlteros. O imperador decidira moralizar os comportamentos reprimindo todo o tipo de imoralidade, o adultério, em particular, é alvo de uma severa legislação para combater a evidente decadência de costumes e Ovídio, subtilmente, contra o seu eterno inimigo tácito, escreve este hino ao adultério, ao amor físico e, no limite, à promiscuidade. Só os angelicamente inocentes e distraídos sociais é que têm uma linha invisível na sua mente que separa sexo e política, religião e política, opções individuais e impacto social das mesmas.

Exílio

Augusto, por razões difíceis de verificar, “relega” Ovídio para Constança. O Imperador limita-se a promulgar um édito evitando assim qualquer processo ou polémica em torno do tema. Ovídio não é “banido”, nem “deportado” (o que implicaria a perda de cidadania e bens pessoais), é “relegado” (relegatus) o que lhe permite manter bens, família, cidadania, comunicar livremente com os amigos e prosseguir a carreira literária. O édito era válido temporariamente (ad tempus) e, sobre o motivo verdadeiro do afastamento, o próprio Ovídio tinha a obrigação de manter absoluto silêncio. Apesar desta manobra de afastamento aparentemente inocente, a verdade é que a obra de Ovídio nunca mais constou nas Bibliotecas Públicas.

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Com Ovídio inicia-se, assim, uma autêntica “poética do exílio” com que praticamente todos os poetas futuros vão física, espiritual ou emocionalmente sentir-se identificados: todos os poetas escrevem sempre a partir de algum exílio interior e/ou exterior, todos os poetas se sentem sempre estranhos na sua terra, na sua língua, no seu país, sentem sempre que pertencem a alguma outra raça espiritual e que não são valorizados social, académica e, infelizmente, até mesmo familiarmente. “Poeta integrado” e feliz só os farsantes que cantam laudas ao poder vigente, vivem em conluio com a ideologia e mafia das editoras oficiais e trocam favores com a corrupção espiritual dos media main stream, permitindo e favorecendo o embuste da “política cultural”.

Tristia e Epistulae ex Ponto

O sofrimento e dor no exílio passam a ser absolutamente dominantes em todos os escritos posteriores de Ovídio. No exílio escreve aos amigos, à família, à esposa, etc. Esses escritos foram divididos em dois conjuntos de cartas em que é visível o profundo sofrimento em que está mergulhado: um conjunto, habitualmente conhecido como “Tristes” (o título diria tudo), mas que é mais correto traduzir-se por “Cantos de Tristeza” (Tristia); e as “Cartas do Ponto” (Epistulae ex Ponto). A dor prolongada torna-nos repetitivos, queixosos e monótonos, por isso, muitas vezes, o doente se afasta de tudo e todos: ele sabe que está reduzido à repetição lamuriante das suas dores.

Metamorfoses

Se a Arte de Amar fica nos anais da Literatura, em particular da Literatura Erótica, as Metamorfoses engrossam a vasta lista dos grandes poemas épicos. São 15 livros escritos em hexâmetros dactílicos com misturas heterogéneas de mitologia grega e latina num novelo de micronarrativas encadeadas de forma extremamente complexa e sofisticada. O poema inicia-se numa genesíaca criação do mundo e progride cronologicamente até ao contemporâneo “divino” Augusto.

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As Metamorfoses têm um lugar de relevo como referência cultural, é praticamente impossível fazer o levantamento das obras musicais, literárias ou pictóricas que têm alguma alusão direta ou são alguma variação de algum episódio. Todos os pintores de praticamente toda a história da pintura fizeram alusão e/ou pintaram diretamente cenas que são de forma imediata ou longínqua originárias das Metamorfoses. A obra faz parte intrínseca da cultura ocidental.

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Remedia Amoris

Para o amor cantado e sofrido na Arte de Amar, Ovídio escreve uma elegia terapêutica, uma, sempre atual e necessária, cura para o amor, chamada Remedia Amoris. A elegia destina-se aos homens – presumindo que o luto amoroso e terapia amorosa feminina deve ser diferente.

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A terapia amorosa proposta passa por, desde logo, evitar o suicídio como instrumento de fuga ao sofrimento amoroso e, invocando Apolo, exorta os que estão em sofrimento amoroso a iniciar o luto imediatamente evitando a preguiça e aquilo que mais tarde se chamará de “depressão”. Dá indicações preciosas repetidas pelos séculos entre os experimentados no sofrimento amoroso: evitar ver a pessoa que se gosta, não cair na tentação de recorrer à magia para recuperar amores perdidos, procurar ver a pessoa que se gosta vestida de forma usual para perder aquela imagem de beleza idealizada que a roupa de gala sempre aumenta, iniciar uma outra qualquer relação o mais rapidamente possível e evitar totalmente o ciúme (grande gasolina do amor).
Ovídeo recorre a uma linguagem médico-terapêutica tratando o amor como uma patologia. Para muitos esta elegia termina o ciclo das poesias erótico-amorosas onde Ovídio faz o papel de “Doctor Love” ensinando a amar e a separar-se.

Some things never change…

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