A visualidade das composições sonoras de Nick Cave

Verônica Daniel Kobs

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Em junho de 2013, a Companhia Vigor mortis apresentou a peça Jukebox vol. I, no Teatro Universitário de Curitiba. Além do espetáculo, o diretor participou de uma conversa aberta ao público, sobre seu mais recente projeto. Paulo Biscaia Filho sempre costuma presentear o espectador com peças instigantes e de impacto. O terror e o suspense são marcas registradas da Companhia, que sempre faz uso da linguagem intermidiática em suas peças. A relação entre teatro e cinema levou para o palco o universo de Hitchcock. Nervo craniano zero investiu na linguagem tecnológica dos jogos. As HQs e a estética trash foram a base de Morgue story: sangue, baiacu e quadrinhos (que, aliás, já virou filme). Em Jukebox vol. I, foi a vez da música.

As músicas que deram origem à peça são constituídas de som e letra. Enquanto a letra é verbal e fundada na materialidade do signo escrito, o som, no caso das músicas em análise neste trabalho, é abstrato. Isso significa que os instrumentos “emitem sons que não podemos relacionar a nenhum outro objeto do mundo a não ser ao próprio instrumento” (ANDRÉS, 2018). Dessa forma, esse tipo de sonoridade “não pode ser índice de algo” (ANDRÉS, 2018).

Entretanto, conforme Antonio Jardim, o desafio da música é “fazer aparecer o concreto, numa conjuntura tão marcada pelas abstrações” (JARDIM, 2010, p. 173). De fato, essa interpretação é bastante pertinente, pois a concretude insinua-se já na constituição social da música, resultante de um contexto histórico e inserida nesse meio, como produto cultural. Jardim completa seu raciocínio mencionando que, na cultura ocidental, os processos abstratos podem ser considerados “tentativas de medir, identificar e representar a realidade” (JARDIM, 2010, p. 173). Desse modo, embora a abstração musical já aponte para o concreto, é inegável que o conteúdo da letra, que se faz de modo narrativo contínuo (como no exemplo da maioria das composições de Nick Cave) ou fragmentado, fornece as informações essenciais para a representação imagética. Isso ocorre, porque a “música letrada […] adiciona um elemento figurativo junto à abstração do som” (ANDRÉS, 2018).

Baseada nas composições de Nick Cave, cantor australiano líder da banda The bad seeds, a peça reforça características que já são típicas da Vigor mortis. Das músicas, o espetáculo empresta o pessimismo, o tom soturno (demonstrado pelo culto à escuridão, pela voz grave e pelo ritmo lento) e a recorrência a temas como violência, morte e religiosidade. Nick Cave, normalmente associado ao rock alternativo e ao movimento pós-punk, exalta o lado obscuro do amor e tem composições que se encaixam perfeitamente ao horror das histórias de Jukebox vol. I (citem-se, como exemplos, a música I’m gonna kill that woman −  que faz parte do disco Kicking against the pricks −  e o CD Murder ballads).

Embora em Jukebox vol. I o diretor resgate elementos já conhecidos pelos fãs dos espetáculos anteriores da Vigor mortis, a surpresa, agora, foi muito além da história e do uso de imagens projetadas no cenário. Dessa vez, o público teve a chance de acompanhar a peça em momento real, pela internet. Bastava acessar o site oficial da Companhia, no dia e na hora marcados para o espetáculo, e esperar o início da transmissão. A peça durava uma hora e foi encenada de quinta a domingo, no período de 06 a 23 de junho (O espetáculo descrito e comentado neste texto foi transmitido no dia 22 de junho de 2013, às 20h30.).

O projeto trouxe duas contribuições importantes para o teatro: a prevalência da arte, que se fez independentemente de lucro e bilheteria (mas não com menor público, já que o acesso pela internet deve ter atraído muitas pessoas, pela facilidade e comodidade e também pela curiosidade de experimentar assistir a uma peça on-line); e a dupla interatividade. Um dos lados desse processo permitia que o público se conectasse ao espetáculo, o que acabou alterando a dinâmica de ir ao teatro. A plateia era a sala de casa, com interferências específicas (que não a conversa do estranho na cadeira ao lado). A quem assistiu à peça pela internet a interrupção poderia ocorrer por culpa do telefone que talvez tocasse, do som da TV ou da atitude de algum familiar desavisado. Outro aspecto da interatividade relacionava-se à participação dos espectadores que aceitavam se tornar coautores da história. Funcionava assim: na hora da compra do ingresso, o espectador optava por interferir ou não no espetáculo. Se a escolha fosse pela interferência, a pessoa, em dado momento, deveria ir até o palco e “acionar a juke-box” jogando um dado. Cada figura correspondia a uma história, que, quando sorteada, era encenada. Os desenhos à escolha do espectador aparecem no cartaz abaixo, que faz um convite (“Escolha sua música”), para explicitar a relação entre as interatividades da juke-box e da peça, o que justifica o título do espetáculo. Além disso, vale ressaltar que o imperativo “Escolha sua música” já aparecia no cartaz da peça, estabelecendo, desde o início, a intermidialidade e anunciando uma experiência sinestésica, já que, ao escolher um produto sonoro, o espectador não iria ouvir nada. Em vez disso, ele veria uma adaptação da letra da música, concretizada no palco. Partia-se, então, do auditivo para  visual.

A visualidade das composições sonoras de Nick Cave 1
Figura 1: Cartaz da peça Jukebox vol. I.
Foto: Verônica Daniel Kobs

Dependiam, então, das escolhas dos espectadores o conteúdo e a ordem do espetáculo. Evidente que pedir a participação do espectador em uma peça de teatro não é novidade, mas o fato de o espetáculo ser acionado pelo espectador, como se um aparelho tivesse sido ligado ou um jogo tivesse sido iniciado, intensifica essa interação. Além disso, a multiplicidade e a rapidez da peça, formada por histórias curtas e com temas atuais, adaptaram-se perfeitamente ao perfil da realidade social contemporânea. Quando o espetáculo começava, um espectador já devia definir e acionar o primeiro esquete. A pessoa que selecionava, sentava-se em uma cadeira, em frente à juke-box, para assistir à história que sorteou. Apenas um ator (Kenni Rogers) representava vários papéis. Ele era o protagonista de todos os esquetes. Apresentaremos aqui uma breve descrição de cada mininarrativa do espetáculo, sendo que três delas serão analisadas em comparação com as músicas de Nick Cave, levando em conta a adaptação da mídia sonora para o contexto visual.

A primeira história correspondeu à figura de uma menina com pescoço cortado. Uma criança, Loreta, falou do enterro de um cachorrinho, cujo cadáver tinha sido encontrado à porta da escola, pingando sangue. O crime foi interpretado como uma atitude demoníaca e a menina terminou a narração espumando pela boca. Nessa narrativa, a síntese da visualidade foi uma desvantagem, porque, na letra da música The curse of Millhaven, que se desenvolve como um longuíssimo poema narrativo, há inúmeros detalhes e isso permite que o terror se estabeleça de modo mais eficaz. Cave dá voz a uma menina assassina, que se intitula “a praga” da cidade em que vive e que descreve seus crimes de forma fria e vil, baseando-se, inclusive, na inexorabilidade da morte:

Sim, sou eu, Lottie. A Praga de Millhaven
Eu finquei terror no coração desta cidade
Como meus olhos não são verdes
E meu cabelo não é amarelo
É mais para o contrário
Eu tenho uma bela boquinha debaixo de toda espuma
La la la la La la la lie
Mais cedo ou mais tarde, todos nós temos que morrer (CAVE, 2019)

Ao final da história de Loreta, que iniciou o espetáculo, veio o agradecimento, que se repetia depois de encerrado cada esquete: “Obrigado por seu olhar” (JUKEBOX, 2013). Posteriormente, as imagens de bota, chapéu e arma corresponderam à história de um caubói decadente. Ele narrou cenas de violência e de um assassinato, contado a partir de flashbacks, que surgiram em forma de partes de um filme, projetadas ao fundo do cenário.

Com a terceira figura, a de um rosto partido, foram apresentadas imagens de uma mulher, Felícia, que foram sobrepostas à imagem do protagonista e narrador da história. Aliás, nas imagens projetadas durante o espetáculo (com as quais o protagonista contracenava) surgiram outros nomes que compunham o elenco da peça: Guenia Lemos, Uyara Torrente e Viviane Gazotto. Nessa história, que integra encenação e projeção, fundindo artes e mídias e introduzindo a tecnologia videográfica no palco, o personagem principal era médico, tinha duas filhas e, uma noite, quando saiu para atender um doente, sua mulher foi esfaqueada. Essa narrativa resultou da adaptação visual de Song of Joy. A ironia do título e o amor do homem pela mulher e pelas filhas servem para acentuar ainda mais a tragédia vivida pelo protagonista. Embora a violência tenha sido bem retratada no esquete, novamente a síntese visual foi usada em detrimento dos detalhes da história. O início e o final do texto de Cave são repletos de religiosidade, citando, inclusive, o Paraíso perdido, de Milton:

Tenha piedade de mim, senhor
Permita-me impor a ti
Não tenho onde ficar
E meus ossos estão completamente gelados
Eu lhe contarei uma história
De um homem e sua família
[…]. (CAVE, 2019)

Entretanto, a força visual da peça cumpre seu papel, ao enfatizar a crueldade do crime, que, na letra da música, é descrito desta forma:

Joy foi amarrada com fita elástica
Em sua boca uma mordaça
Ela fora esfaqueada repetidamente
E enfiada em um saco de dormir
Em suas próprias camas
Minhas meninas foram roubadas de suas vidas (CAVE, 2019)

O sorteio de um sino trincado fez o protagonista representar um religioso. Projeções de letreiros luminosos de sex shop e imagens de uma mulher fazendo pole dance dividiram  a cena com o homem. Ele rezava para afastar de si a tentação, quando, de repente, surgiram imagens de uma prostituta morta, ensanguentada. Ouviram-se gritos agudos de mulher e a imagem da dançarina morta prevaleceu, enquanto a do homem se apagou, em um canto escuro do palco. O quinto espectador selecionou a figura de asas radiografadas, o que fez surgirem imagens de trânsito noturno, projetadas sobre o homem. Choro e sussurro. Música alta, lenta e orquestrada. As imagens se repetiam e o rosto do homem acabou sumindo na escuridão.

O sexto esquete correspondeu ao desenho de uma mala e se iniciou com uma moça desembarcando em uma rodoviária. Ela queria ver o mar. Um homem realizou o desejo dela e depois a levou para um hotel. Quando chegaram ao quarto, ela, ingênua, quis dispensá-lo. Ele disse que foi embora e que, no dia seguinte, leu no jornal que ela foi encontrada amarrada na cama, amordaçada e com um tiro na cabeça. Em seguida, ele demonstrou intenso descontrole e apareceram flashes da mulher feliz, rindo, vendo o mar. Depois, surgiu a imagem da garota morta, com sangue na roupa branca. Choro e grito agudo. Toque de cantiga de ninar. Por fim, ele recomeçou a contar a história, em um ciclo obsessivo. Essa história, baseada na música Kindness of strangers, de Nick Cave, suprime a introdução sobre a infância pobre da garota, Mary, e também o final, que apresentava a velha moral da história: “Então, mães, mantenham suas filhas em casa / Não as deixe viajarem sozinhas / Diga-lhes que este mundo é cheio de perigos / E que evitem a companhia de estranhos / Oh pobre Mary Bellows / Oh pobre Mary Bellows” (CAVE, 2019). O diretor da peça teatral, em favor da síntese, escolhe deixar o início da música subentendido na ingenuidade da garota. Quanto ao final, Biscaia abandona o ranço da moralidade e faz uso da ironia, visível no contraste de cores (o vermelho-sangue na roupa alva de Mary) e audível, pela cantiga infantil que embalava o sono eterno da garota.

A história número sete, ou simplesmente “faixa bônus” (afinal, desde o início, foi divulgado que o espetáculo seria composto de seis esquetes, escolhidos entre os oito disponíveis; por essa razão, a sétima história é considerada um “bônus”), foi escolhida pelo espectador que encontrou em exemplar de Vigor mortis comics sob a cadeira. Nessa história final, correspondente ao desenho de uma mão, uma cantora gospel dividia a cena com um pastor e fiéis em uma igreja. Porém, a imagem foi pausada e deu lugar a outro contexto. Nele, a menina, em depoimento a um telejornal, narrava que o pastor foi ao quarto dela e declarou que ela tinha “espírito de lésbica” (JUKEBOX, 2013) e que “precisava se tratar” (JUKEBOX, 2013). A moça disse que ele tapou a boca dela com “aquela mão” (JUKEBOX, 2013). A imagem do pastor, que sempre se alternava com a da moça, ressurgiu, em meio a gritos de “Aleluia” (JUKEBOX, 2013). A fala da moça voltou, para denunciar que o pastor ofereceu à vítima 200 reais, se ela ficasse quieta. A próxima cena já mostrava o pastor recolhendo o dinheiro doado pelos fiéis e ele dizia estar decepcionado, pois a “fé” de seus seguidores já tinha sido “mais forte” (JUKEBOX, 2013). Em outro momento, o homem falava sobre as denúncias apresentadas na TV. Na ocasião, ele discursou contra drogados, prostitutas e homossexuais. Comparando-se a Jesus, ele contou como “salvou” (JUKEBOX, 2013) um irmão, que agora contribuía mensalmente com a igreja. No fim, o pastor chegou a afirmar que o Satanás devia temê-lo e a imagem dele foi consumida por labaredas. Fim.

Embora as histórias sejam curtas e independentes, elas se aproximam pela temática da violência. A relação de conflito com o outro também é uma constante. O primeiro esquete, do cão morto por uma garotinha, destaca-se pelo exagero característico do estilo trash. Porém, os demais episódios, mesmo sem esse excesso, compõem o retrato do cotidiano social contemporâneo que repercute nas notícias policiais. Nesses casos, o exagero não está no tom sensacionalista que beira o artificialismo trash; está na overdose de criminalidade e crueldade, resultado do acaso ou da ação deliberada do outro. Entretanto, essa predominância não é uma criação do diretor, nem mesmo do compositor Nick Cave. A música, pelo seu aspecto social, refletiu a realidade; e a peça de teatro adaptou as composições de Cave, demonstrando que, infelizmente, mesmo em momentos e em contextos diferentes, diversos tipos de violência nos caracterizam e nos afligem.

REFERÊNCIAS

ANDRÉS, P. Referência de fonte eletrônica.O abstrato e o figurativo na música. Disponível em: https://pt.slideshare.net/pauloandres54/o-abstrato-e-o-figurativo-na-msica. Acesso em: 5 out. 2018.

CAVE, N. Letras traduzidas de Nick Cave & The Bad Seeds. Disponível em: <https://www.letrasdemusicas.com.br/nick-cave-the-bad-seeds/maistraducoes/>. Acesso em: 5 mai. 2019.

JARDIM, A.Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

JUKEBOX VOL. I. Direção de Paulo Biscaia Filho. Curitiba: jun. 2013.

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