Curtindo Selfie

Verônica Daniel Kobs

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A peça Selfie, com direção de Marcos Caruso e atuações de Mateus Solano e Miguel Thiré, já passou por diversas cidades brasileiras. Inclusive, em 2015, o espetáculo fez parte da Mostra Oficial do Festival de Teatro de Curitiba. A história de Cláudio (Mateus Solano) é bastante comum, nos dias de hoje, porque reflete as mudanças sociais resultantes da ênfase tecnológica. Os problemas comem, quando o personagem decide parar de usar qualquer tipo de rede social ou aplicativo e migrar para um sistema único, encarregado de armazenar todas as informações relativas ao usuário. Porém, um dano irreparável provoca a perda de todos os dados, que deixam de existir não apenas no novo sistema, mas também nos outros ambientes virtuais. A partir desse momento, Cláudio não existe mais. Ele foi simplesmente deletado da rede e, na sociedade de hoje, sabe-se que o fato de ser excluído do ambiente virtual equivale praticamente a não existir no mundo real.

Confiando cegamente na eficácia do novo sistema, Cláudio perde informações importantes e precisa recuperar inúmeros dados (números de telefone, fotos, e-mails, lembranças…), para ter sua vida de volta. O prejuízo é grande, pois, contemporaneamente, criou-se uma espécie de intermediário para acessar informações pessoais: “‘A informação escaneada, que no mundo analógico poderia ser acessada apenas pelo uso de nossos olhos, de repente é armazenada em um ambiente onde só pode ser recuperada pelo uso da tecnologia (…)’” (SALERNO, 2015, p. 55, grifo no original). Além disso, segundo a autora, que usou como base dados da Academia da Arte das Imagens em Movimento, Ciência e Tecnologia de Hollywood: “‘O buraco negro digital aprisiona o projeto. (…). Se o recurso começar a definhar, a informação poderá ainda ser recuperada, mas, depois de um tempo, ela não estará mais acessível devido a arquivos corrompidos, a formatos ou tecnologias obsoletos’” (SALERNO, 2015, p. 55, grifo no original).

O projeto de Selfie é audacioso. O tema é atual e vai contra hábitos vigentes da sociedade, fazendo uma espécie de conclamação ao modo de vida do passado. Com a mesma irreverência, o espetáculo opta também por uma estrutura bastante particular: o cenário é simples e vazio; o figurino resume-se a um macacão azul; os personagens que contracenam com Cláudio, quando aparecem, são todos representados por Miguel Thiré; não são usados adereços de cena (com exceção de uma cadeira/pufe e do próprio celular); e tanto os sons como os objetos são sugeridos por onomatopeias e gestos, respectivamente. Nesse contexto, o público, auxiliado pelos gestos dos personagens, é levado a imaginar quase tudo: a ação de jogar coisas em uma pia de cozinha, por exemplo; o café que é derrubado sobre o computador de Cláudio; e até o computador em que o protagonista trabalha. Essas características da peça são particularmente interessantes, porque se assemelham a sistemas de simulação interativa, que “dão ao usuário a sensação de estar em ‘interação pessoal e imediata com a situação simulada’ (LÉVY, 1999, p. 66-67)” (RÉGIS, 2012, p. 183, grifo no original), ou de simulação por imersão. Outra similaridade se dá pela ausência de um cenário típico e de objetos na peça, já que: “Os sistemas de realidade virtual estabelecem relações de fraca percepção física, espacial e temporal” (RÉGIS, 2012, p. 183).

Curtindo Selfie 1
Fig. 1: A partir de gestos, o elenco de Selfie convida o público a imaginar os adereços das cenas Imagem disponível em: https://vejasp.abril.com.br/atracao/selfie/

Selfie, ao debater a (in)existência de Cláudio no mundo virtual (e também no mundo real), se aproxima de produtos culturais que recentemente enfocaram as mesmas questões, a exemplo de: Ela (EUA, 2013), filme dirigido por Spike Jonze, estrelado por Joaquin Phoenix, que conta a história de Theodore, que se apaixona por Samantha, um sistema operacional (“OS1”); e Homens, mulheres e filhos (EUA, 2014), filme de Jason Reitman, com Jennifer Garner no papel principal, que trata da influência da tecnologia na vida das pessoas. De fato, o computador e a internet, na contemporaneidade, reconfiguraram as relações sociais. Aliás, para Fatima Régis, a questão chega a ser bem mais complexa: “As novas tecnologias permitem novos modos de experiência, fazendo repensar o próprio conceito de humano” (RÉGIS, 2012, p. 184).

Para demonstrar isso, Selfie apresenta e critica os novos hábitos de nossa sociedade, que comodamente relega à máquina a responsabilidade por guardar momentos felizes, datas importantes, compromissos, etc. Nas relações cotidianas, vários momentos da peça refletem situações bem desagradáveis: a mãe (Miguel Thiré) constata a magreza do filho Cláudio pela foto que tira dele, enquanto o recebe, sem dar muita atenção ao que ele diz, em meio a curtidas, minivídeos caseiros e outros posts nas redes sociais (e ela vê a foto antes mesmo de ver o filho nos olhos, pessoalmente); a namorada (Miguel Thiré) diz a Cláudio que rompeu o namoro porque ele tinha sumido das redes sociais por 5 horas, sem dar nenhuma satisfação; e o próprio protagonista é flagrado utilizando dois computadores ao mesmo tempo, com várias janelas abertas, em grupos de redes sociais distintas e ainda falando ao celular, com uma chamada em espera. De modos distintos, todas essas cenas tratam do fator tempo, da simultaneidade, da urgência e da instantaneidade, temas que são uma espécie de cartão de visitas de nossa época. Ítalo Calvino já escrevia sobre isso, no final de 1990, quando afirmou que, no próximo século, “outros media triunfariam” e que, “dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso” arriscariam “reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58). Hoje, Zygmunt Bauman confirma a hipótese de seu antecessor, ao mencionar algumas ações muito próprias de nosso tempo: “(…) encurtar o espaço de tempo da durabilidade, (…) esquecer o ‘longo prazo’, (…) enfocar a manipulação da transitoriedade (…), dispor levemente das coisas para abrir espaço a outras igualmente transitórias e que deverão ser utilizadas instantaneamente” (BAUMAN, 2001, p. 146, grifo no original).

Entretanto, em Selfie,não é apenas o tempo que condiciona as ações dos personagens. Relacionado a ele está a tecnologia, que fornece os recursos e os aparelhos que privilegiam a rapidez e o imediatismo. Sobre isso, a peça também debate a questão da indústria, afinal, os produtos necessitam de peças e acessórios, abrangendo vários ramos dos mercados de informática e telefonia, principalmente, incluindo fabricantes, revendedores, etc. Desse modo, um ciclo vicioso se estabelece: a sociedade atual se caracteriza pela rapidez, o mercado atende essa demanda e o consumidor obedece, simultaneamente, a dois comandos: do modismo e da oferta. Bauman inverte essa associação, afirmando que a sociedade “foi remodelada à semelhança do mercado” (BAUMAN, 2008, p. 76). Em outras palavras, o mercado dita as regras, a sociedade “compra a ideia” e cada consumidor trata de se adaptar à nova tendência, iniciando um processo de “afiliação” (BAUMAN, 2008, p. 71): “A ‘sociedade de consumidores’, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas” (BAUMAN, 2008, p. 71, grifo no original).

Durante a peça, Cláudio vai, gradativamente, se deparando com velhos hábitos. Primeiro, um amigo relembra a época em que todos sabiam os números de telefone dos outros de cabeça. Depois, o protagonista é surpreendido por um menino desconhecido que lhe pede ajuda com uma pipa. Cláudio resiste, mas nesse instante a peça opõe duas realidades, representadas pelos símbolos antagônicos da pipa e do celular. O garoto insiste, Cláudio se vê naquela criança e acaba percebendo que o convite vai muito além de empinar pipa. Aceitando aquele chamado, o personagem pode reviver a infância, entrar em outro ritmo de tempo, mais frouxo e descompromissado; pode ser livre e experimentar novamente a sensação de brincar ao ar livre, ultrapassando as fronteiras dos espaços fechados, da solidão reclusa ou da alienação absoluta que a tecnologia impõe, mesmo quando se está ao ar livre, em meio a uma multidão.

Por esses motivos, o protagonista tem uma decisão importante para tomar. Nesse processo, Cláudio percebe a tecnologia como causa de aprisionamento e alienação. Por outro lado, ele também está ciente das facilidades que temos hoje, graças ao computador e à Internet. O personagem nos representa, refletindo sobre a problemática da influência da tecnologia em nossas vidas. Apesar de não percebermos claramente, a cada momento construímos um pouco de nossa história: “A narrativa sobre a aventura da humanidade não está concluída. Nós escreveremos seus próximos capítulos. Cabe a nós decidir se seremos zumbis, robocops ou qualquer devir-outro que desejarmos. Como diz o menino Hogart para o robô em O gigante de ferro (1999): Você é o que escolhe ser” (RÉGIS, 2012, p. 207).

Referências:

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

_____. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

RÉGIS, F. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade homem-máquina. Curitiba: Champagnat, 2012.

SALERNO, A. Ciber limbo. Revista da Cultura, edição 93, abril de 2015, São Paulo, p. 55-57.

SELFIE. Direção de Marcos Caruso. Curitiba: abr. 2015.

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