O (ciber)espaço múltiplo e solitário das interfaces digitais

Verônica Daniel Kobs

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No espaço cibernético, voltam a ser importantes questionamentos já conhecidos. As relações arte/coletividade e arte/estatuto, debatidas, dentre tantos, por Mallarmé e Duchamp, ganham novamente importância. Pode-se mesmo afirmar que elas se complementam, já que o estatuto do autor é relativizado, pelo fato de o texto admitir e até exigir maior participação do leitor. Desse modo, uma narrativa que apresenta hiperlinks será também múltipla em significado, como qualquer texto escrito, mas com a diferença de o texto se fazer, a partir da colaboração do leitor, que rompe com a linearidade que, no texto tradicional, é previamente ditada pelo autor e que, portanto, acaba induzindo a leitura. O hipertexto é uma obra sempre em progresso e com pelo menos duas instâncias ligadas à autoria: o leitor e o próprio autor. Completando a série de relativização de conceitos que a questão do estatuto provoca, é imprescindível citar o status da obra de arte, que, contemporaneamente, é muito diferente da concepção tradicional. A arte, hoje, é incompleta, dinâmica e também permeável a interferências externas, sem a mínima necessidade de que essa seja especializada.

O site <http://www.superbad.com/1/trunk/trunk.html>privilegia as imagens e a interatividade, ao apresentar, na tela, um grande espaço em branco, uma pequena lista de links, à esquerda, a figura de um carro com o porta-malas aberto e uma pergunta:

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A pergunta desencadeia a curiosidade do leitor e o espaço em branco serve como convite à interação. No comando do mouse e do processo de leitura, a cada clique uma imagem é revelada. Esse tipo de interação demonstra muito bem a relativização do estatuto do autor e, por consequência, da arte, bem como estabelece a importância da coletividade. São esses ingredientes que tornam cada acesso ao site do Superbad uma experiência, nova, diferente, completamente inusitada, afinal, cada internauta pode fazer aparecer no porta-malas o que achar mais interessante. Além disso, é importante enfatizar que o jogo proposto pelo site não respeita a lógica. In the trunck, cabem bonecas, bolas, estátuas e até caminhões inteiros. Desse modo, a interatividade, com as imagens, que possibilitam as mais diversas combinações, não apenas promove a criatividade da autoria; também é um convite à imaginação do leitor/espectador.

Nesse tipo de jogo, feito a partir de links que desencadeiam imagens ou textos, a multiplicidade mistura-se com a rapidez, que é outra característica importante das expressões artísticas atuais, especificamente daquelas feitas para serem veiculadas no ciberespaço. Essa qualidade faz parte da produção, da veiculação, em muitos casos, e do consumo (ou recepção, para usar um sinônimo mais conhecido). Isso ocorre, sobretudo, em blogs criados com a intenção de divulgar objetos de arte, por exemplo, e, que, portanto, não se restringem a um caráter meramente informativo. Nesses veículos, as postagens são diárias ou, em alguns casos, semanais. Essa aceleração na produção indica o desejo de aproveitar o mercado informal, uma das grandes oportunidades da Internet, e, ao mesmo tempo, visa a atender à grande demanda dos leitores, que buscam novos produtos.

Na era cibernética, o tempo é contado em minutos. As coisas envelhecem mais rapidamente e, por isso, precisam ser atualizadas e substituídas com a mesma celeridade. O próprio veículo de comunicação exige essa urgência. On-line, o usuário rompe barreiras de espaço e tempo, já que a comunicação se faz de modo indireto, por meio do suporte eletrônico. Natural, então, que os textos também incorporem esse imediatismo. O hipertexto, aliás, cumpre um pouco esse papel, afinal, quando o leitor aciona um link, uma tela a prece instantaneamente, dando a impressão de que o texto foi criado naquele instante. Em termos de espaço, também, o hipertexto é ilusório. À primeira vista, poucos podem imaginar que de uma simples tela e de pouquíssimas linhas pode surgir um texto cuja leitura dure quase uma hora e que, se fosse transcrito, renderia páginas e mais páginas…

Outra função do hipertexto que usa um suporte digital é a demonstração de que as distâncias entre as diferentes expressões de arte podem ser diminuídas ou eliminadas. No ciberespaço cabem todas as artes. Imagem e texto se acumulam, à espera da colaboração do leitor, que os combina e os organiza. Nesse processo, qualquer semelhança com a montagem cinematográfica não é mera coincidência. Apenas neste exemplo, a hibridação se fez pela combinação de elementos verbais e pictóricos e pela associação de três artes: literatura, pintura (ou qualquer outra arte predominantemente visual, como a fotografia, por exemplo) e cinema.

No site <http://www.ubu.com/sound/noigandres.html>, o projeto Noigandres – VerbiVocoVisual, de 2007, com curadoria de  Cid Campos, Joao Bandeira, Leonora de Barros e Waler Silveria, apresenta transposições de diversos poemas concretos para a música, dentre as quais se destaca a de número 7, do poema Life, de Décio Pignatari. O texto foi composto em 1957:

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O texto parte de um ideograma que é estilizado pelo autor e que reúne as letras da palavra life, apresentada, no poema, primeiro na forma vertical e com as letras for a de ordem, depois na forma sintétíca sugerida pela estilização e, por fim, mostrada na horizontal.

A versão musical do texto, disponível no site <http://www.ubu.com/sound/noigandres.html>, veio apenas em 1991. Com voz do próprio poeta e música de Cid Campos, a transposição musical de Life chama a atenção, pelo fato de expandir o embaralhamento das letras sugerido no texto. Dessa forma, apesar do fato de a sequência alterada permitir a criação de outras palavras, todas as combinações levam a uma só palavra, life. Como a palavra é escrita e falada em inglês, as letras são pronunciadas na mesma língua: “e, f, i, l… life/ i, e, l, f… life/ f, l, e, i… life/ l, i, f, e… life/ e, f, i, l… life/ i, e, l, f… life/ f, l, e, i… life” (PIGNATARI, 2011). Sem importar a sequência das letras, life é sempre life. Na trasncrição acima, estão reproduzidos todos os versos da música, que apresenta seis combinações, todas diferentes uma da outra, mas, ao final, o sétimo verso repete a ordem das letras do terceiro verso. A arbitrariedade demonstrada na ordem das letras pode ser comparada à unidade e à imutabilidade do ideograma estilizado pelo poeta, em uma tentativa de pensar e usar a língua ocidental sob a perspectiva da cultura oriental.

Em outras transposições do mesmo texto, porém, a literatura não ganha apenas voz e som, mas também cara, movimento e até cor. Acessando o link <http://www.youtube.com/watch?v=q_U0-J3myEs>, é possível assistir a um vídeo de Life. Essa transposição, entretanto, ainda usa o preto sobre o branco, pouco se distanciando do texto-base, se comparada com outro vídeo, disponível no site <http://www.youtube.com/watch?v=OwFLdRxQ_e0>. Nesse exemplo, criado por Augusto de Campos, em 1996, a animação digital usa cores, criando um efeito de maior movimento, reforçado pela sobreposição de sons.

Além de apresentar transposição de textos literários para a música, o site oficial de Arnaldo Antunes traz diversos exemplos de vídeos, caligrafias, poemas, instalações, artes plásticas e artes gráficas, dentre outras formas de expressão artística. Tal multiplicidade evidencia bem a hibridação que caracteriza as obras do artista e o ciberespaço como um todo. É claro que a transposição musical desempenha papel importante na carreira do artista, afinal, desde o tempo dos Titãs, Arnaldo Antunes associava a letra ou o poema visual à música. Entretanto, hoje, a obra do artista estabelece outras conexões, abrangendo também o aspecto performático, a escultura e diferentes tipos de montagens. Aliás, por essa razão o leiaute do site oficial do cantor é modificado constantemente, propondo uma estética representativa, a cada período, como sinal de uma identidade mutante.

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Nesse espaço de trocas constantes (o site, em sentido estrito, e o ciberespaço, em um sentido mais amplo), a palavra convive com sons e imagens, razão pela qual o processo de negociação e de evolução estética é inevitável. O suporte digital abrange todos esses elementos distintos, de sistemas sígnicos diferentes, e oferece ao internauta, em uma única tela, opções de mídias também variadas: livro, música, filme… O que elas têm em comum, afinal, além de serem expressões de arte? Elas dividem o mesmo espaço e são reproduzidas por uma grande mídia, maior, alternativa, digital e eletrônica, que incorpora as demais, fazendo-as parte de um todo virtual (mas não inimaginável): “Tudo ao mesmo tempo agora.”

A questão do tempo ou a falta dele é tão essencial, na sociedade contemporânea, que muitas pessoas, atualmente, usam o ciberespaço para encurtar distâncias e dispensar alguns trâmites que atrasam a vida cotidiana. Evidentemente, isso representa uma facilidade extrema. Entretanto, o problema é que, por conta disso, alguns procedimentos estão dispensando qualquer tipo de contato pessoal. Com isso, a individualidade sai fortalecida, pois a mediação é eletrônica. Exemplos de sites associados a essa ideia multiplicam-se, dia após dia. São oferecidos vídeos explicativos, aulas de todos os tipos, testes vocacionais, entre outros serviços. As pessoas, hoje, podem até mesmo rezar, fazer pedidos e acender uma vela pela Internet. Para isso, basta acessar o site <http://www.velavirtual.com.br>, escolher a opção Acenda Sua Vela, selecionar uma vela que esteja apagada, ou livre, e seguir as instruções, preenchendo alguns quadros:

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Além disso, é possível incluir o nome de uma pessoa em uma missa. Qualquer que seja o processo escolhido, tudo ocorre de modo muito semelhante à realidade. A diferença é a mediação eletrônica.

Existem também sites que ensinam brincando. Uma boa dica para se divertir on-line é fazer uma aula com o Paul, clicando sobre o link: <http://www.dancingpaul.com/>. Nesse espaço, o internauta escolhe as luzes, o cenário, o ritmo, os passos, a música e até decide se Paul deve dançar mexendo apenas os braços, ou os braços e as pernas ao mesmo tempo, usando todo o seu suingue.

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No campo dos sites mais sérios, é possível encontrar exemplos que oferecem a possibilidade de experimentações variadas. No endereço <http://www.webexhibits.org/colorart/>, voltado à pintura, o internauta pode brincar com a variação de tonalidades usando uma tela de Picasso; pode simular os diferentes efeitos da luminosidade ou da ausência dela sobre um objeto representado, tendo como base uma pintura de Monet; assim como também pode fazer um retrato de Marilyn Monroe, seguindo o estilo de Andy Warhol e da pop art.

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Interagindo com as propostas relacionadas à pintura, o internauta, dependendo do interesse que tem pela pintura, pode apenas fazer uma simples experimentação, usando os recursos disponibilizados no site de modo totalmente lúdico. Em contrapartida, é possível também aprender noções básicas de pintura, pela facilidade de associar a teoria à prática, processo que celebra o autodidatismo e demonstra a importância que têm hoje a individualidade e a praticidade.

Evidentemente, a mediação digital cresce a cada dia, dispensando o contato humano para a contratação de serviços ou para a aquisição de algum produto. Com o computador, foi dado o primeiro passo, que foi aprimorado depois, pelos smartphones, que oferecem inúmeros aplicativos. Sendo assim, hoje, é possível pedir uma pizza, chamar um táxi, fazer a compra de daquele livro recém-lançado, registrar reclamações, fazer transações bancárias, etc., tudo por meio dos aplicativos. Em outras ocasiões, quando preferimos a forma antiga, que nos permitia falar com um atendente de carne e osso, como nós, somos enganados, pois somos atendidos por um ser robótico, com voz gravada, mas com nome de gente.

Em um primeiro momento, a conclusão deste trabalho pode aparentar certo ressentimento, pela sua obviedade. Entretanto, a redundância é uma qualidade, quando utilizada para ressaltar coisas que são de fato fundamentais e para permitir o entendimento ou a apreensão do mundo que nos cerca, na tentativa de se adquirir plena consciência dos processos que caracterizam a sociedade contemporânea. É nessa categoria que se insere a citação abaixo, que sintetiza boa parte das ideias desenvolvidas no presente estudo:

A grande revolução-evolução, hoje vivida por toda humanidade, está acontecendo na esfera da cultura (da mente, do espírito, do pensamento, da reflexão, do ser interior) e, evidentemente, em conflito com a esfera da civilização em que ainda predominam as formas consagradas ontem, mas já superadas pelas novas formas emergentes com a revolução tecnológica-cibernética que vem mudando a face do mundo, pela anulação das distâncias geográficas e da ruptura de todos os antigos limites (espaciais, temporais, mentais, éticos, estéticos…). (COELHO, 2007)

Fazemos parte dessa revolução. Somos agentes e também objetos dessa mudança. Nosso tempo, talvez, daqui a alguns séculos, seja citado como um marco, afinal, quantos de nós imaginamos fazer parte da sociedade que temos agora? O nosso presente já foi caracterizado como futuro, há algumas décadas, quando tudo parecia distante. Naquela época, muitos previam avanços tecnológicos e científicos de última geração, próximos ao que víamos nos filmes de ficção científica… E, agora, surpreendentemente, fazemos parte disso.

REFERÊNCIAS

COELHO, N. N. Literatura: Um olhar aberto para o mundo. Disponível em: <http://www.collconsultoria.com/artigo7.htm>. Acesso em: 02 jun. 2007.

PIGNATARI, D. Life. Disponível em: <http://www.ubu.com/sound/noigandres.html>. Acesso em: 26 jun. 2011.

1 comentário em “O (ciber)espaço múltiplo e solitário das interfaces digitais”

  1. Artigo acadêmico mas que fala com o cidadão comum – feito este seu admirador, professor Verônica.
    Tudo provando que segundos são fatais hoje, como diziam Schmidt & Cohen (2003), em “A nova era digital” – “A internet é o maior experimento da história envolvendo anarquia. A cada minuto, centenas de milhões de pessoas criam e consomem conteúdo digital num universo online que não é limitado por leis terrestres”.

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