Felizardo
Foi por muita insistência que ele comprou o bilhete.
A intenção era pagar um boleto de cartão de crédito e só, mas a atendente o venceu pelo cansaço, de modo que topou comprar um bolão de dez jogos da Mega da Virada.
Três semanas depois, no almoço do dia primeiro, quando já havia passado a embriaguez resultante da noite anterior, decidiu que queria saber sobre o que conversavam os parentes em frente à TV. Todos pareciam muito agitados.
— O que tá rolando? — perguntou para um sobrinho.
— Um dos três ganhadores da Mega da Virada é da lotérica do bairro.
Nosso herói cuspiu toda a cerveja que bebericava após a indagação.
— Nossa… que legal!
Buscou fingir estar apenas impressionado, enquanto que por dentro estava eufórico.
Não precisava se preocupar se estava fingindo mal, ninguém parecia notar que travava uma batalha interna.
“Calma, seu filho da puta. Não vou criar expectativa apressada. Vou ver se fui eu. Onde foi que eu deixei essa merda?”
Acabou saindo da casa da sogra sem falar nada a ninguém. Revirou cada canto do apartamento até achar o bilhete jogado de qualquer jeito numa gaveta de tralhas.
Ligou o computador com toda a calma e tranquilidade que lhe era possível (teve problemas para digitar devido a uma leve tremedeira).
Acessou o site da CAIXA na intenção de checar uma por uma as sequências de seu bolão, mas seus olhos saltaram rapidamente para o sétimo, que começava com o quatorze.
14 20 37 42 49 57
— Puta merda! — exclamou consigo mesmo.
Levantou sem notar que o fazia. Virou-se. Se viu encarando no espelho do quarto.
— Puta merda — disse à sua imagem no espelho.
Passou vários minutos escondendo o bilhete em algum lugar, sempre pensando melhor e colocando em algum outro lugar que julgava mais seguro. E isso se repetiu nos dias seguintes.
Apenas uma semana depois tirou o dia para ir reivindicar seu prêmio. Iria num banco do centro porque não queria ser identificado. Só contaria a pessoas muito bem selecionadas, e quando já as estivesse presenteando.
Enquanto dirigia tranquilamente, parou num sinal vermelho. O bilhete estava num saquinho dentro da meia do pé esquerdo. Se fosse assaltado, teriam sua permissão para levarem o carro.
Pensava no que faria com o dinheiro distraidamente, de bem com a vida.
Achava que o dia não poderia estar mais lindo e agradável quando deu uma olhada para o lado e viu um banner com anúncio de serviços em frente a uma papelaria, e algo lhe ocorreu.
Nunca foi de guardar troféus. Seus diplomas nunca viram uma moldura de perto, por exemplo, mas achou que um pedacinho de papel de cento e setenta e dois milhões merecia um destaque.
Estacionou pouco à frente e foi até a papelaria.
Uma hora e meia depois sua esposa irrompeu pela entrada do hospital municipal com muita pressa. Encontrou o marido chorando baixinho, soluçando e tentando urrar, sem conseguir emitir uma só explicação.
Indagado sobre as suspeitas diagnósticas, o médico disse:
— Estado de choque. Está em crise por algum tipo de estresse extremo. Pensamos em dar um tranquilizante. Aqui, ele estava com isso. Talvez dê uma dica da causa.
Entregou a ela uma tira de papel térmico próprio de notas fiscais ou semelhantes plastificada. Estava toda preta.
Ela encarou o que até então era o comprovante por um tempo, tentando encontrar alguma explicação, e começou a chorar também.
Não tão intensamente quanto o marido, mas chorou.