LETRAS NA SAPUCAÍ: O Carnaval como “intermidialidade sintética”
Neste breve texto, o carnaval será apresentado como “intermidialidade sintética”, categoria criada por Jen Schröter (2012). Apesar de a parceria entre literatura e carnaval ser bastante antiga, não é necessário que o samba-enredo tenha um tema literário. Isso ocorre porque o samba-enredo é, antes de tudo, letra, poema e, portanto, literatura. Entretanto, quando uma escola decide utilizar texto(s) literário(s) como base, cria-se mais um elo na corrente, já que o desfile carnavalesco não irá concretizar e representar apenas a letra do samba-enredo. Em vez disso, a literatura é adaptada pelo samba-enredo, que por sua vez, é adaptado pelas imagens que dão forma às palavras escritas e cantadas. Nesse sentido, o carnaval é um espetáculo intermidiático por natureza, porque: a) parte do signo escrito, confinado aos limites reduzidos da página; b) passa pela música, que amplia os domínios do samba-enredo, cantado em uníssono, pelos componentes da escola e pelo público; e, finalmente, atinge a concretude imagética, com as alegorias e fantasias que representam os elementos do enredo. Tal percurso demonstra a pluralidade estética do desfile de carnaval. Para Schröter: “Os termos ‘síntese de mídias’ ou ‘fusão’ só fazem sentido se forem considerados como apresentação e recepção espaço-temporal simultânea de diferentes formas de mídias em um contexto institucionalizado” (SCHRÖTER, 2012, p. 20, grifo no original, tradução nossa). De fato, essa fusão e essa simultaneidade caracterizam o carnaval.
Em 2019, o carnaval carioca mostrou ao público as obras literárias de dois cearenses ilustres: José de Alencar e Rachel de Queiroz. A escola responsável pela adaptação sonora e visual dos textos literários foi a União da Ilha do Governador. O enredo, criado por Severo Luzardo Filho, já anunciava, a um só tempo, o contexto literário clássico, a linguagem dialetal e a influência do cordel. Sob o título A peleja poética entre Rachel e Alencar no avarandado do céu, a diversidade do enredo era completada pelo movimento armorial e pela arte da xilogravura:
Dessa forma, o cordel é usado como elemento intermediário, possibilitando a adaptação dos clássicos literários, em uma festa popular como o carnaval. Além disso, o cordel também reforça os temas regionais, o folclore e a própria brasilidade, traços que marcam as obras dos dois escritores homenageados pela escola. Assim como os autores, o cordel também é nordestino, sendo considerado, hoje, um patrimônio cultural:
Rádio não existia; jornal era raro. Quando este chegava, levado dos grandes centros – Recife ou Fortaleza, por exemplo – com o atraso normal dos meios de transporte de então, já o folheto se antecipava na divulgação do fato. Tornava-se o folheto o elemento mais expressivo para que os acontecimentos chegassem ao conhecimento de todos, lidos nos mercados, nas feiras, nos serões familiares. (DIEGUES JÚNIOR, 1977, p. xvii)
A partir de 1920, até chegar o momento culminante da literatura de cordel do Nordeste como veículo de comunicação, o folheto de cordel superou todos os veículos existentes no momento, até mesmo o jornal. (SILVA, citado em RESENDE, 2005, p. 99)
Com base em fragmentos de inúmeras obras de Queiroz e Alencar, a escola dividiu o desfile carnavalesco em cinco setores. No setor 1, destacava-se a cultura telúrica do nordeste, não apenas pelo apego à terra, mas também pela associação entre o sujeito e a natureza, e até mesmo pelo sofrimento causado pela seca. Nesse aspecto, a agremiação buscou inspiração nestes trechos literários:
– “Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno…” (RACHEL, “O Quinze”)
– “Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu” (ALENCAR,”O Guarani”).
(UNIÃO DA ILHA, 2019, grifo no original)
O setor 2 apresentava ao público a culinária e o artesanato. Já, no setor 3, a ênfase foi dada à música, às festas típicas e ao folclore: “- Rachel, dama de fé, as festas folclóricas que tanto animam o sertão são feitas no Ceará, […]. Reisado e maracatu e Padim Ciço Romão. – Alencar, meu bom senhor, quadrilhas, cirandas e boi de chifre dourado, são festas bem conhecidas de meu povo rogado” (UNIÃO DA ILHA, 2019). Nos dois últimos setores, o 4 e o 5, a escola de samba traz, respectivamente: a dicotomia sertão/litoral; e a renda, que é tratada como sinônimo de moda e beleza.
Batizada de O milagre da fé, a comissão de frente da escola homenageava a religiosidade do nordestino, com cenas que mostravam o povo rezando e pedindo ajuda, a Deus e a Padre Cícero. Na letra do samba-enredo, essa performance é motivada por estes versos: “Vou pedir a Padim Ciço / Abençoe nosso povo / Essa fé vai nos guiar / Chão rachado, meu sertão / Peço a Deus pra alumiar / Terra seca que não seca a esperança / Arretada vocação de te amar” (UNIÃO DA ILHA, 2019). Padre Cícero não só atende ao pedido de seus fiéis, mas também surpreende a todos, quando surge em pleno céu (literalmente), voando sobre um planador:
Ao longo do desfile, é nítido o cruzamento da cultura letrada com a cultura popular. Do mesmo modo, ficção e realidade alternam-se, demonstrando uma simbiose perfeita da literatura com o carnaval, o qual, segundo Bakhtin, situa-se “nas fronteiras entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação” (BAKHTIN, 2008, p. 6). No que se refere à adaptação dos textos literários de Queiroz e Alencar para os formatos de samba-enredo e de desfile carnavalesco, destaca-se o aspecto multissensorial, pois a palavra que antes foi lida, nos livros dos dois escritores cearenses celebrados pela escola, agora é ouvida, cantada e também vista. No primeiro momento, o signo verbal realiza-se em sua plenitude, por abranger simultaneamente os sentidos da visão, da audição e da fala. Posteriormente, em uma espécie de extrapolação, garantida pela intersemioticidade do desfile carnavalesco, a palavra torna-se imagem, por meio de fantasias, alegorias e adereços e aguçando ainda mais a visão. Esse caráter plural do carnaval também foi analisado por Bakhtin. Conforme o teórico: “O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada […] uma cosmovisão carnavalesca […], que lhe penetra todas as formas” (BAKHTIN, 2005, p. 122). De modo distinto, mas que pode complementar a constatação de Bakhtin, o estudioso Roberto DaMatta acentua o caráter imagético do carnaval neste trecho: “O desfile desses grupos é revestido de extrema pompa, já que se fundamenta na teatralização que tem como tema personagens, ambiente e ações” (DAMATTA, 1997, p. 58). Com base na afirmação de DaMatta, é possível interpretar a imagem como resultante do processo interartístico, protagonizado, no caso em análise, pela literatura e pelo samba. Além disso, é imprescindível destacar o fato de que a concretude imagética é a essência de todo desfile carnavalesco, que, por sua vez, teatraliza, coreografa e organiza temporalmente a narrativa, com o intuito de dar forma e corpo aos versos fugidios e à sonoridade quase abstrata do samba-enredo.
Entretanto, as artes se complementam (na tal “simbiose perfeita”), quando lembramos os estudos de Mário de Andrade sobre a cultura musical brasileira, ou quando nos deparamos com o conceito de etnomusicologia: “Se a antropologia destaca a música ao lado do mito como espaços privilegiados da análise (estrutural) das culturas, cabe à Etnomusicologia a construção teórica de modelos que compreendam a articulação texto/contexto desde a música erudita até a de definição popular” (DINIZ, 2010, p. 289). Evidentemente, tanto a etnomúsica quanto a música, em sentido amplo, são artes sociais, assim como a literatura e qualquer tipo de arte, seja ela popular ou erudita, afinal o artista é sempre o leitor sensível do mundo e para o mundo.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, M. de. Aspectos da música brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
_____. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2008.
DAMATTA, R. Carnavais, malandros e heróis: Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DIEGUES JÚNIOR, M. Literatura de cordel. In: BATISTA, S. N. Antologia da literatura de cordel. Natal: Gráfica Manimbu, 1977, p. i-xxvi.
DINIZ, J. Música popular e literatura em diálogo: Mário de Andrade e as poéticas da palavra escrita e cantada. Revista Alea, n. 2, vol. 12, Rio de Janeiro, dez. 2010, p. 288-307.
RESENDE, V. de M. Literatura de cordel no contexto do novo capitalismo: O discurso sobre a infância nas ruas. Dissertação de Mestrado pela Universidade de Brasília – UnB, 2005.
SCHRÖTER, J. Four models of intermediality. In: HERZOGENRATH, B. (Ed.). Travels in intermedia[lity]: Reblurring the boundaries. Lebanon: Dartmouth College Press: 2012, p. 15-37.
UNIÃO DA ILHA. União da Ilha do Governador − Carnaval 2019. Disponível em: <http://www.gresuniaodailha.com.br>. Acesso em: 5 mar. 2019.