Como fica um autor perante o ‘local de fala’ alheio?

Verônica Daniel Kobs

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Um autor, muitos locais de fala

Atualmente, acompanhamos atentos ao debate sobre o conceito de local de fala. Sem dúvida, o ponto positivo dessa discussão é a conquista da voz, da expressão sem intermediários, em alto e bom som. Entretanto, alguns posicionamentos, mais arraigados (talvez em excesso) estabelecem um lado negativo, ao recusarem opiniões que não se baseiam na experiência estrita. Por conta disso, muitos discursos têm sido considerados ilegítimos, ainda que sejam solidários às minorias. Nesse contexto, há quem julgue uma heresia o fato de falar ou escrever sobre algo que não foi vivenciado.

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A fim de aprofundarmos esse assunto, iluminaremos o tema em debate, a partir do registro de pessoas que já refletiram sobre a problemática do local de fala na literatura e nas outras artes. Comecemos, então, este breve apanhado, lembrando as palavras de Mia Couto, em entrevista a Mirella Nascimento:

(…) se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala, ela [a escrita] morre. Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo. Se eu só posso escrever naquela competência do meu lugar de fala como compete, eu só falo sobre mim. (NASCIMENTO, 2019)

A afirmação do autor faz todo o sentido, quando pensamos no processo de criação literária, com mundos ficcionais, habitados por personagens diferentes entre si, cada um com seu perfil, sua linguagem, sua personalidade.

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Pensando na prática da escrita literária, é muito complicado restringir as histórias apenas nas experiências de fato vividas pelos autores. Afinal, como seria um romance feito a partir dessa premissa? Mulheres escritoras só poderiam criar personagens femininas? Claro que esse exercício que proponho aqui é apenas genérico, pois a situação ficaria ainda mais insustentável, se pensássemos em outros detalhes, como: classe social, profissão e estado civil das personagens… Sim, porque, a rigor, aqueles que defendem o local de fala afirmam que não é possível assumir posturas e perfis estranhos ou desconhecidos. Portanto, as personagens femininas da escritora hipotética que mencionei seriam estilhaços da autora empírica. O status ficcional da obra seria, então, fragilizado. Além disso, se, nessa questão do local de fala, é a experiência que dá autoridade para a criação de cada personagem, um livro deveria ser publicado por vários autores… Talvez essa seja uma boa oportunidade para muitos ghost writers saírem do anonimato e assumirem sua voz, suas experiências e sua escrita. De qualquer modo, sob essa perspectiva, parece claro que o local de fala é um conceito redutor e que anula completamente os exercícios da imaginação e da alteridade. Nesse sentido, a concepção de Cezar Tridapalli pode ser entendida como complementar à visão do moçambicano Mia Couto:

O espaço da alteridade, a riqueza da ficção que permite viver o que Ferreira Gullar afirmou — “a arte existe porque a vida não basta” —, a experimentação de, sendo um, ser outro, caracteriza de forma contundente a narrativa literária. (…). É trabalho da literatura reivindicar o direito de tomar a voz do outro, não para reproduzi-la de maneira superficial e preconceituosa, e sim para colocá-la em sua complexidade na dinâmica das relações humanas. (TRIDAPALLI, 2019, p. 59, ênfase no original)

Como se vê, autores contemporâneos nos fazem lembrar dos clássicos versos de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente” (PESSOA, 1995, p. 235). Sim, todo escritor, seja prosador ou poeta, tem esse compromisso com o fingimento e com a verossimilhança, em maior ou menor grau. Essa associação define não apenas seu estilo, mas também sua relação com o público e com a realidade, que sempre serve de referência para a ficção. O exercício da autoria exige que o escritor saia de si mesmo e experimente os prazeres e as angústias do(s) outro(s). Sem dúvida, é isso que alimenta a imaginação do próprio escritor e do leitor.

Como resolver então a impossibilidade física e psicológica de um autor estar em vários lugares ao mesmo tempo, ocupando-os a ponto de não reproduzir nem as blandícies nem os preconceitos típicos dos clichês a respeito de alteridades?

Resposta que julgo boa: antes de se colocar em lugar de fala, ou antes de criar sua rede polifônica — emaranhamento de vozes dissonantes —, é fundamental para o autor deslocar-se para um atento lugar de escuta e habitá-lo, permanecendo ali, mesmo quando começar a falar pelos seus outros (…). (TRIDAPALLI, 2019, p. 60)

Nessa sugestão, ainda há um risco e esse depende da posição do leitor, que não deve julgar o trabalho do autor apressadamente, como se a criação literária fosse algo inconsequente, pautado pelo imediatismo. Pelo contrário, é preciso que o público e a crítica levem em conta o exercício da escuta como prévia, no processo detalhado da escrita e do labor artístico. Infelizmente, não foi isso que ocorreu, por exemplo, no lançamento da ópera-rock Doze flores amarelas, dos Titãs. O espetáculo estreou no Festival de Teatro de Curitiba, em 2018, e contava a história de três Marias, que tinham sido assediadas e estupradas, em uma festa. Para desenvolver o tema da violência contra a mulher, é óbvio que várias músicas falavam sobre isso e muitas eram cantadas por Sérgio Britto. Pronto. Esse fato bastou para muitas pessoas escreverem críticas severas, reclamando do que eles consideravam ter sido uma afronta. Os defensores mais fervorosos do local de fala afirmaram que as atrizes deveriam ter cantado a maioria das músicas no show. Discordo desse posicionamento, pois creio que temos que valorizar a atitude solidária dos outros, que também refletem sobre a violência contra a mulher e que pensam em modos de repercutir esse assunto, conscientizando o público sobre isso.

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Há quem defenda o conceito do local de fala e acha ilegítimo outrem opinar sobre a temática discutida.
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Já outros acreditam que, independentemente se você faz parte do grupo ou não, o debate é fundamental.

Sendo assim, uma etapa fundamental para repensarmos o conceito do local de fala passa obrigatoriamente pela retomada de exemplos que enaltecem a alteridade e demonstram que é possível encontrarmos excelentes representações, apesar de essas terem sido criadas por autores que estão fora do círculo:

(…) afirmo que a brilhante Jennifer Egan — para mim, o talento mais promissor da literatura moderna — criou alguns dos personagens masculinos mais interessantes da ficção. Quem leu o soberbo A Cruel Visita do Tempo sabe do que estou falando. E o que dizer da Diadorim, de Guimarães Rosa? Há personagem feminina mais empoderada e corajosa do que ela, na história da nossa literatura? (CAETANO, 2019)

Com esses exemplos, Marcos Caetano posiciona-se contra a obrigatoriedade da legitimação do discurso literário, tendo como base apenas o critério do lugar de fala. Conforme o autor, a exigência de que qualquer enunciação deve ser baseada na experiência do autor, que deve ser protagonista na vida real, privilegia tão somente o isolamento e a exclusão. Essa mesma visão é registrada por Djamila Ribeiro, neste trecho, em que a autora associa o lugar de fala “à legitimação de um discurso excludente, pois não viabiliza outras formas de ser mulher no mundo” (RIBEIRO, 2017, p. 51).

Dessa forma, um paradoxo se estabelece, no momento em que o direito de fala das minorias, antes silenciadas, passa a excluir o diálogo. Vejamos, então, duas opiniões acerca disso. De um lado, salienta-se a diversidade, que “significa muitas vozes — diferentes, dissonantes, contraditórias que sejam — participando dos diálogos” (CAETANO, 2019). Do outro, prevalece a ideia de que o local de fala deve relacionar a autoria à vivência:

Nesse diálogo, que também se refere a protagonismo, capacidade de escuta e lugar de fala, façamo-nos as perguntas: Que histórias não são contadas? (…). De quem é a voz que foi reprimida para que a história única do feminismo virasse verdade? Esse turning point nas nossas narrativas relaciona-se com a principal pauta do feminismo negro: o ato de restituir humanidades negadas. (XAVIER, 2019)

Corroborando o raciocínio de Giovana Xavier, a obra editada por Linda Alcoff e Eduardo Mendieta menciona a descolonização, relacionando esse processo ao local de fala como modo de questionar as identidades fixas, muitas vezes estereotipadas. Evidentemente, isso é uma decorrência das relações de poder, desequilibradas pelo silenciamento das minorias, que passam a ser representadas pelos grupos dominantes (ALCOFF; MENDIETA, 2009, p. 29). Cezar Tridapalli refere-se a isso, neste trecho contundente e essencial, que resume a problemática do conceito do local de fala, nas artes e na sociedade, hoje: “O termo ‘lugar de fala’ tornou-se fundamental para discutir a posição de minorias afônicas e sem representação, cujos discursos vêm embalados em clichês pasteurizados por grupos hegemônicos” (TRIDAPALLI, 2019, p. 58).

Entretanto, retomando a opinião de Caetano, isso não deve negar o direito de expressão àqueles que não tiveram a experiência de fato, mas que, de algum modo participaram dela. Em outras palavras, o microfone deve ser compartilhado por todos, sem que o direito de fala de uns ofusque a palavra do outro. Na afirmação de Giovana Xavier, não apenas a fala é destacada. A autora realça também a capacidade de escuta. Portanto, é preciso, sim, falar, mas, acima de tudo, ouvir o que o outro tem a dizer, para que o diálogo se reacenda, com mais vozes, principalmente com aquelas que antes eram oprimidas e vetadas pela hegemonia. 

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Nesse contexto, o escritor Cezar Tridapalli sugere as etapas a serem seguidas, para garantirmos, a um só tempo, a diversidade, a interação e os direitos de expressão, de fala, e de reparação — os quais, sem dúvida, são fundamentais no processo de revisão das identidades, que, periodicamente, passam a ser colocadas “sob rasura” (Cf. DERRIDA, 2002):

É mais do que urgente pensar sobre lugar de fala e polifonia, pois ambas as expressões têm muito a contribuir com debates contemporâneos. Em termos rápidos e simplificadores: 1) lugar de fala é o respeito e o acolhimento da voz de grupos sociais que tiveram ao longo da História sua linguagem silenciada ou deformada pela linguagem dominante. Ou, mais que acolhimento, trata-se da busca pela incorporação dessas vozes à dinâmica da heterogeneidade, (que deveria ser) regulada politicamente; 2) polifonia é a multiplicidade de vozes em conflito que falam em uma narrativa ficcional, com personagens marcados fatalmente pelo modo de ver e ler o mundo. (TRIDAPALLI, 2019, p. 59)

Qualquer sociedade, afinal, deve mostrar e equilibrar seus plurais. São as diferenças que dão condições ao exercício da empatia, princípio tão em voga em nossa sociedade tecnológica. É bem verdade que o diferente também instaura os conflitos na arena social, nossa nova ágora, seja no mundo físico ou no virtual, mas as negociações resultantes disso nos ajudam a aprimorar as regras de convivência, principalmente no que se refere ao respeito e à tolerância.

REFERÊNCIAS

ALCOFF, L. M.; MENDIETA, E. (Ed.). Identities: race, class, gender, andnationality. Malden: Blackwell Publishing, 2009.

CAETANO, M. Um grande erro chamado “lugar de fala”. Disponível em:

https://www.meioemensagem.com.br/home/opiniao/2019/01/23/um-grande-erro-chamado-lugar-de-fala.html. Acesso em: 14 jul. 2019.

DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

EVARISTO, C. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, M. A. (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza, 2007, p. 16-21.   

NASCIMENTO, M. Uol tab #159: Questionar lugar de fala “mata” literatura, diz Mia Couto. Disponível em: https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/05/24/uol-tab-159-mia-couto.htm. Acesso em: 14 jul. 2019.

PESSOA, F. Autopsicografia. In: _____.  Poesias. 15. ed. Lisboa: Ática, 1995, p. 235. 

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. (Coleção Feminismos plurais)

TITÃS. Doze flores amarelas. [Programa do espetáculo]. Curitiba, 2018.

TRIDAPALLI, C. As vozes da voz. Revista Helena, n. 11, Curitiba, 11 jun. 2019, p. 56-71.

XAVIER, G. Intelectuais negras visíveis. Disponível em:

http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2017/07/19/feminismo-uma-pratica-linda-e-preta/. Acesso em: 14 jul. 2019.

* Este texto foi baseado na Apresentação intitulada “Artes, identidades e local de fala”, publicada na revista de literatura Scripta Alumni n. 22 (jul.-dez. 2019).

3 comentários em “Como fica um autor perante o ‘local de fala’ alheio?”

  1. Vou ler, reler com atenção, pois o texto o exige, professora.
    Depois de bem maturado, quem sabe eu “fale” algo.
    Bom estar em sua companhia na #recortelirico.
    Um abraço do Beto.

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  2. Oi, Prof Verônica:
    Li, reli e entendi pouco. De uma coisa, estou certo — da sua discordância que levou a essa avaliação certeira: “…creio que temos que valorizar a atitude solidária dos outros, que também refletem sobre a violência contra a mulher e que pensam em modos de repercutir esse assunto, conscientizando o público sobre isso.”
    O outro ensaio que o seu texto me trouxe foi o de pensar que se nos cerceassem tanto (no âmbito da imaginação), não teríamos mulheres de Atenas e outras leituras de homens feitas lá bem dentro (fundo) da alma feminina; tampouco seria “concebível” um personagem como o simpático “Mr. Bones” — o cão de Timbuktu, narrativa do norte-americano Paul Auster.
    Fico também com esta coda: “São as diferenças que dão condições ao exercício da empatia, princípio tão em voga em nossa sociedade tecnológica. É bem verdade que o diferente também instaura os conflitos na arena social, nossa nova ágora, seja no mundo físico ou no virtual, mas as negociações resultantes disso nos ajudam a aprimorar as regras de convivência, principalmente no que se refere ao respeito e à tolerância.”
    Abraço do Beto.

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