Anna Karenina e Emma Bovary: traições, suicídios e outras virtudes

Frank Wan

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Princesas russas, czares, trenós, palácios sumptuosos, intriga e amor são ingredientes para empacotar qualquer coisa e vender bem, mas, Anna Karenina consegue sempre escapar à vertigem de ser reduzida a mais uma carinha bonita de Hollywood e continua a ser um romance cósmico que perpetua Tolstoi.

Numa época cheia de ateliers de escrita criativa e instrumentos literários e em que a Literatura, claramente, entra em extinção quer na qualidade de produção, quer no meio de divulgação, o estilo de Tolstoi assombra e desafia: o russo não faz mais do que escrever frases absolutamente diretas, quase como um relatório de um contabilista ou a descrição policial de um acidente rodoviário mas, apesar dessa escrita simples, as páginas voam diante dos nossos olhos, os personagens desfilam, a narrativa avança a um ritmo magistral (doce lentidão) e não se contam nem comparações, nem metáforas, nem malabarismos estilísticos: diz o que é e nada mais do que isso.

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Neste “primeiro romance”, como Tolstoi lhe chamava, já que considerava o Guerra e Paz um mero relato épico-histórico, há um hiato difícil de definir entre a voz do narrador omnisciente e os personagens, a esse hiato chamaríamos de “proximidade” narrador-personagem e essa é a arte de Tolstoi ou Proust: contam, sabem tudo, mas os personagens são livres, autores deste tipo dominam a arte da dialética entre a intimidade e o distanciamento com os seus personagens. Jorge Amado dizia que o grande escritor se media pela liberdade que as suas personagens tinham, diria que os deuses fazem as duas coisas ao mesmo tempo: os personagens estão presos ao narrador (e até ao autor) e têm liberdade. Tolstoi prende os personagens na trama para criar um espaço para o autor e contem-se para dar liberdade à interação entre aqueles. É desta dialética que surge a magia da releitura: cada releitura é um novo romance porque a releitura encaixa em outros intervalos entre o domínio do autor e a liberdade dos personagens. James Joyce, Beckett e outros pioneiros modernos vão criar esta dinâmica através do recurso a todo uma maquinaria estilística (em Ulysses, por exemplo, há diversos estilos de escrita) sofisticadíssima e criativa, Tolstoi, com meios absolutamente clássicos, sem recurso praticamente a nada, consegue um efeito muito superior: a linguagem é convencional e os meios são perfeitamente artesanais.

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Um dos grandes mistérios do imaginário humano é associarmos os romances de Tolstoi aos cenários principescos quando nos livros as descrições de cidades, paisagens, cenários são reduzidíssimas. Eis a magia de Tolstoi! O que é descrito à saciedade são as ações humanas, qualquer ação humana é descrita com detalhe, do remexer os bolsos, ao tirar cigarros do estojo, já as cidades são praticamente ignoradas e os ambientes campestres são ligeiramente privilegiados. Há um quase efeito de teatro em que se traça com clareza a linha divisória do cenário e dos personagens por isso é tão fácil uma adaptação cinematográfica, só que, para se adaptar ao cinema é preciso virar ao contrário a escala: privilegiar o cenário e colocar os personagens a evoluir nas mesmas – é preciso assassinar Tolstoi para fazer um filme, nada como contratar uma empresa de assassinos como Hollywood para o efeito.

Tudo evolui de forma fluida em Anna Karenina, momentos e ações contradizem a descrição geral dos personagens, não são só os cenários urbanos e campestres que são relegados para segundo plano, é o próprio Tempo, de certa forma, as obras de Tolstoi são uma “Não Busca do Tempo Perdido” (nem ganho), para o autor o tempo é mais ou menos convencional cronológico e dá-se a si mesmo a liberdade de o esticar e encurtar, processo, que, no fundo, é o que a nossa mente faz naturalmente, toda a obra publicada como folhetim tem sempre um “arrastar de pés” narrativo típico de quem se reserva para uma entrada mais animada no capítulo seguinte . Os personagens ora se atrasam, ora se adiantam numa quase valsa de entradas e saídas, não é por acaso que que há tantas adaptações para Ballet. Entram e saem, os vilões são capazes de atos de bondade e os bondosos de vilanias, como na vida, todos trocam momentaneamente de papel para horror do encaixotamento da linguagem cinematográfica.

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Anna Karenina sai em busca da aventura perdida, vai se tornar uma heroína de uma épica da traição, a sua conceção de liberdade, o seu espaço de evolução é o mundo das aventuras extraconjugais, o mergulho vertiginoso no vazio da Babilónia que a rodeia e Tolstoi não a julga, nem condena, deixa-a voar como ela entende, mas revê-se em Levin que vai noutra direção: regresso à espiritualidade, redescoberta da família e da vida no campo. Anna é mesmo tratada como uma colega literária, ela também lê romances, entrando assim no conjunto vasto de personagens leitores onde pontificam a rainha das leitoras adúlteras, Emma Bovary, e o fidalgo a quem os romances de cavalaria fizeram tão mal ao seu equilíbrio psíquico, o matricial Don Quixote. 

Quando se fala de Anna Karenina, rapidamente é citada Emma Bovary, formando assim uma espécie de grupo em rede social do nosso imaginário chamado o “grupo das traidoras”, essa colagem foi feita assim que Anna Karenina foi publicado, pensou-se que Tolstoi procurava plasmar ou revisitar o grande tema da traição e suicídio. De fato, Tolstoi até estava em França no momento em que Madame Bovary é publicado na Revue de Paris (1856), mas esse fato induz em erro: há diversas entradas nos Diários de Tolstoi que remontam a 1851 em que o autor aborda o assunto obsessivamente – muito antes, portanto, da publicação de Madame Bovary. Tolstoi pretendia escrever sobre o tema e, provavelmente, o suicídio de Anna Stepanova Piriogova, perto do local onde Tolstoi vivia foi o gatilho para que o plano de escrita se concretizasse.

Diversos aspetos e modalidades de evolução no plano da vida aproximam as duas heroínas, ambas são leitoras de romances e ambas são personagens do grande romance que é a sua vida, o que permite a projeção de todos os leitores, todos somos leitores e personagens de alguma história de vida, mas Emma vai ter de vender a alma ao diabo para criar o espaço das suas fantasias já que “todos os dias ela esperava alguma coisa” e nada acontecia, através da ambição, endividamento e traição vai criar uma rampa para se tornar “como os personagens” dos seus livros, ao passo que Anna Karenina tem já toda uma Sodoma e Gomorra à sua disposição, não necessita de criar cenários, de fugir da província, apenas se revê e se reconhece, os romances apenas lhe revelam aquilo que ela já sente, são apenas um espelho mágico que lhe devolve e revela o que já sente.

“Anna Karenina lia e compreendia, mas não tinha prazer em seguir as aventuras de outros. Ela tinha um desejo enorme de viver por si mesma tudo. Se a heroína de um romance cuidava de doentes… ela sentia um desejo súbito de entrar no quarto de um doente e ajudar; se um membro do parlamento pronunciava um discurso, ela queria pronunciar esse discurso ela mesma; se lady Mary seguia numa caçada a cavalo, provocava a cunhada e suscitava admiração pela sua audácia, ela também o queria fazer”.

Lev Tolstoi, Anna Karenina (tradução: Frank Wan).

Já Emma Bovary

“Foi então que ela se lembrou das heroínas dos livros que ela tinha lido e a legião heróica de mulheres adúlteras entoou um cântico na sua memória com vozes de irmãs que a encantavam. Ela mesmo materializava as suas fantasias e realizava os muitos sonhos da sua juventude ao tornar-se no tipo de amante que ela tanto tinha desejado.”

Gustave Flaubert, Emma Bovary (tradução: Frank Wan)

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As traições não são mais do que um sintoma, Freud oblige, de mecanismos de autodestruição fortemente ativados, já que a sensação de vazio resulta da depressão e o desejo de “sensações novas e perigosas” através da traição matrimonial não é mais do que a busca da morte perdida, um desejo de morte não elaborado, o novo entusiasmo provisório antes da próxima desilusão, já que o inferno são os outros. Emma Bovary vai deixar de “esperar todos os dias alguma coisa que nunca vem” para atingir a felicidade eterna e Anna Karenina mimetiza o suicídio de um operário atirando-se para a linha férrea, suicídio esse que ocorreu no dia em que conheceu o futuro amante na estação ferroviária. Chegaram, assim, as duas ao destino inconscientemente desejado.

Praticamente toda a literatura e arte em geral posterior é alguma variação da obra de Tolstoi, o que torna a listagem impossível, sinalizando apenas pequenos exemplos: se se virar as proposições de Tolstoi ao contrário, temos todo a obra de Nabokov; a Busca do Tempo Perdido, em parte, obviamente, é uma transposição para Paris e para a burguesia parisiense das idas e vindas das famílias de elite russas, quem o diz é Proust; se se juntar as tensões e todos os personagens ao mesmo tempo da obra de Tolstoi e se lhe der um cunho cómico e cinematográfico, temos praticamente toda a obra de Woody Allen.


https://recortelirico.com.br/2018/03/asfalto-selvagem-nelson-rodrigues/

6 comentários em “Anna Karenina e Emma Bovary: traições, suicídios e outras virtudes”

  1. Frank: “Anna Karenina lia e compreendia, mas não tinha prazer em seguir as aventuras de outros. Ele tinha um desejo enorme de viver por si mesma tudo. Se a heroína de um romance cuidava de doentes… ela sentia um desejo súbito de entrar no quarto de um doente e ajudar; se um membro do parlamento pronunciava um discurso, ela queria pronunciar esse discurso ela mesma; se lady Mary seguia numa caçada a cavalo, provocava a cunhada e suscitava admiração pela sua audácia, ela também o queria fazer”.
    — Há um “ele” que é ela, neste parágrafo…

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  2. Excepcional, Frank, você sempre luxuosíssimo. Admiráveis as duas, suas escolhidas. Mulheres que me (nos) fortaleceram o feminino. Um pouco diferente, mas intensas iguais, deu muita vontade de te ouvir (ler) falar de Olga Benário Prestes. Abraço, meu caro. Parabéns sempre.

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