Receita

Farrel Kautely

Ela não compartilha da antipatia que alguns podem sentir com médicos, como o hábito de usar jaleco fora do consultório ou o gosto que eles têm em serem chamados de doutores mesmo não tendo doutorado, por exemplo. Então não tem nada conta eles.

Bom, talvez seja melhor dizer que não tinha.

Hoje de manhã ela foi a uma consulta que esperou dois meses pra sair. Relatou ao médico todos os seus problemas. Foi tocada, cutucada, analisada e saiu de lá com um pedido para um medicamento tarja vermelha com retenção de receita.

À tarde, foi até uma farmácia no centro para comprar o tal medicamento. Entregou o papel a um auto declarado farmacêutico cético e aguardou.

— Você me empresta sua identidade? — ele pediu.

Ela entregou e ele avaliou por um tempo.

— Qual é o seu nome?

— Daniela de Souza.

— Daniela, a gente só pode vender esse medicamento para a pessoa da receita. Se for parenta sua, precisa mostrar a identidade dela.

— Mas a receita é pra mim mesma.

— Mas não é o seu nome que está aqui. É Patricia.

— Não, é o meu nome.

— Aqui. Tá vendo? Que letra é essa?

— A que parede um P?

— Isso.

— É D.

— Sem chance disso aqui ser um D, minha senhora.

— Se o nome que está aí é Patrícia, cadê o acento que deveria estar nesse i aqui?

— Se existe Nathália com e sem th e com e sem acento, certamente existe tanto Patrícia com acento quanto Patricia sem acento.

— Acontece que essa letra aqui é D.

— Se essa letra é D, então seu nome é Delícia.

— Delícia também tem acen… olha, essa letra aqui é um N, não um T.

— Se isso não é um T, está mais para H que N.

— Aqui, meu querido, estou com dor e preciso do meu remédio. Se você não quer me vender, chama seu gerente ou alguém que saiba ler.

O gerente (e dono) não estava no momento. O dito farmacêutico entrou pela porta atrás do balcão para chamar a polícia. Acreditava ter uma denúncia de receita falsificada, anda acontecendo muito isso pela cidade.

Voltou pouco depois e pediu para que ela esperasse pela vinda do gerente, um médico aposentado que, quando chegou na farmácia, foi informado pelo atendente que a polícia levara, há pouco, uma espertinha que queria ficar chapada com oxicodona.

O dono, curioso, pediu para ver a foto que o atendente dizia ter tirado da receita, dizendo que tem acontecido muita falsificação nos últimos meses.

— Então o nome dela não era Daniela? — perguntou, ao olhar a imagem.

— Era sim.

— Então não estou entendendo. Se o nome dela é Daniela, o que tem de errado?

— Está escrito Patricia aí.

— Não. Isso que parece ser o pingo que confunde o L com i é o risco do meio desse E que parece C. Cadê meu celular? É melhor eu ligar pra polícia.

O delegado que se preparava para interrogar Daniela, feliz com a perspectiva de estar diante da possibilidade de desbaratar uma quadrilha falsificadora, só teve ainda mais certeza de que ela era mesmo uma criminosa quando vieram ter com ele para dizer que um tal de doutor Eduardo ligou, alegando que o nome na receita é mesmo Daniela, e não Patricia.

— Olha aí — o delegado comentou, debochado. — Ela ainda nem fez a ligação dela e a quadrilha já mandou o advogado vim defender. Além de criminosos, são burros. Pergunta presse advogadozinho chave de cadeia aí se ele tem doutorado pra se apresentar como doutor.

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