Machado e a plasticidade do clássico

Adalberto De Queiroz

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Tenho sobre a mesa o belo livro “Machado de Assis: Contos (quase) esquecidos”, organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha[i], 2ª. ed., pela editora Filocalia, do grupo editorial É Realizações, de São Paulo, com 440 páginas bem ilustradas num notável projeto gráfico de Maurício Nisi Gonçalves (Nine Design).

O livro conta ainda com dois posfácios excelentes assinados pelos pesquisadores Valdiney Valente Lobato de Castro e Felipe Pereira Rissato, também responsáveis pela revisão e preparação dos originais.

Confira o posfácio completo clicando aqui.
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“Machado de Assis: Contos (quase) esquecidos” organizado por João Cezar e editado pela Filocalia.

Um livro que como poucos hoje sobre a obra do “bruxo do Cosme Velho” merece o adjetivo de excepcional naquele sentido de estar muito acima do padrão ou da qualidade normal, por ter sido alvo de cuidadoso trabalho editorial, além daquele bordão (bem gasto) de “é livro que para em pé” – pois deve permanecer sobre a mesa (e não na prateleira) de leitores comuns e de pesquisadores.

O livro é excepcional porque traz uma proposta original. “Se não exagero no otimismo” – diz-nos Castro Rocha: “esta nova antologia de contos é um esforço para desenvolver um conceito de clássico que pode ser formulado por meio da leitura lenta, reiterada e intensa de autores como William Shakespeare e Machado de Assis.”

E qual é esta proposta original de antologia?

A partir de um conceito de clássico, definido por “uma radical plasticidade” proporcionar uma “estrutura intrinsicamente moldável”. Parece um jogo de palavras do organizador, mas pode ser checado pelo leitor mais arguto.

Nesta antologia são oferecidos “quatro eixos ou pares” temáticos que servem de uma espécie de guia à seleta, de encaixe aos contos (e algumas crônicas) selecionados. E para cada um desses eixos – Música e literatura; Política e Escravidão; Desrazão; e Filosofia – o crítico se debruçou para lançar seu olhar de leitor atento.


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Não é de hoje que João Cezar faz isso que ele mesmo disse ser “leitura lenta, reiterada e intensa de Machado de Assis”. Em 2006, vamos encontra-lo publicando suas reflexões na revista de “Portuguese Literatry & Cultural Studies”, do Centro de Estudos Portugueses da Universidade de Massachussets Darthmoud.

Em 2013, João Cezar nos brinda com o lançamento de “Machado de Assis: por uma poética da emulação”, (Civilização Brasileira), no qual o crítico Eduardo Cesar Maia via demonstrada “a hipótese de que Machado teria conscientemente adotado uma poética da emulação, um “resgate moderno de práticas retóricas progressivamente abandonadas depois do advento do Romantismo”, é também ponto fundamental no desenvolvimento da argumentação de João Cezar de Castro Rocha. O crítico apresenta a técnica de emulação como “critério de leitura crítica e de escrita inventiva”.

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Resta demonstrado, segundo o consenso crítico, que João Cezar em sua “pesquisa a poética da emulação em Machado de Assis” provou que o mestre brasileiro usa uma técnica de tomar para a sua escrita a de outros autores (e textos) da tradição clássica como Pascal, Xavier de Maistre, Shakespeare, a Bíblia Sagrada, Stendhal, Edgar Allan Poe, Baudelaire, José de Alencar, entre outros ― criando sempre obras novas.

João Cezar demonstra que essas relações com obras anteriores não se tornaram, na obra de Machado, um sinal de subserviência cultural, mas sim uma forma de problematizar a relação dissimétrica entre os centros europeus e as ex-colônias.

Entre todos os modelos para o seu processo de emulação, Machado parece mesmo ter predileção por William Shakespeare.

João Cezar revela isso ao leitor num parêntesis aparentemente deslocado de sua apresentação – entre considerações sobre a necessidade imperativa de “ler e reler e tresler” para se vislumbrar “um retrato de texto inteiro do autor”, em cada “bloco” (eixo) escolheu o organizador dispor os contos sob o critério cronológico, o que nos permite enxergar a evolução do autor. Escreveu Castro Rocha:

(Machado foi mesmo um leitor agudo de Shakespeare: em sua trilogia, Othello, Cymbeline e The Winter´s Tale, o dramaturgo esmiuçou a espistemologia do ciúme, alterando o ângulo de observação do anti herói ciumento.)

João Cezar merecia um parêntesis como este que declarasse o que sabemos sobre seu método de leitura atenta, pois tornou-se leitor agudo de Machado de Assis, tendo organizado volumes que reúnem opiniões diversas sobre a obra do narrador e pode ele, crítico, fazer aproximações desta com a obra de Shakespeare, da qual também é leitor agudo – veja-se para este fim “Culturas shakespearianas: teoria mimética e os desafios a mímesis em circunstâncias não hegemônicas” (2017) e “Machado de Assis: lido e Relido” (2017), este talvez a mais abrangente reunião de diferentes enfoques críticos sobre a obra machadiana em português.

O leitor encontrará por toda a parte os efeitos dessa capacidade de emulação machadiana. “Desde o seu primeiro conto publicado, “Três tesouros perdidos” (1858), o tratamento dispensado à loucura demanda uma análise mais refinada” – alerta João Cezar, para concluir:  “a lição shakespeariana também estaria no radar machadiano, esclarecendo, com auxílio de Polônio: “embora isso seja loucura, possui um certo método”.

Ainda no eixo da “Desrazão” encontramos “Frei Simão”, uma espécie de “motor de procedimento de inversão” shakespeariana – “que mistura de senso e de inocência! / A razão na loucura” – a semente de “O alienista” (1882), “essa deliciosa paródia do silogismo aristotélico”.

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(Foto: Joaquim José Insley Pacheco)

Aliás, sobre esse tema João Cezar estaria preparando um novo livro, dedicado a uma nova leitura do clássico machadiano, “a fim de destacar a paródia de estruturas clássicas do pensamento ocidental”.

Ao leitor comum, não especialista, o livro é aquela joia rara que nos cai às mãos sem que nos sejam retiradas as antologias anteriores. Admite o organizador que “não se trata de inventar a roda uma e outra vez”, não questionando que há um cânone da contística machadiana, mas propondo algo novo: aqui o leitor estará não mais se debruçando sobre aquele “exercício contínuo de congelar esse universo em 20, talvez 30 contos”, dos 200 escritos por Machado ao longo dos 54 anos de ação literária.

Dois eixos especificamente –”Política e Escravidão” e “Filosofia” serão objeto de análise em artigo específico, brevemente. O primeiro porque, embora muita tinta tenha sido gasta para tentar provar “o absenteísmo machadiano”, Castro Rocha nos prova que Machado foi “homem que manteve seus olhos bem abertos”. O tópico “Filosofia”, por sua vez, exige tratamento especial para que “equívocos bem-intencionados” sejam desfeitos e para que possamos, com os olhos do João reler a obra de Machado com olhos livres.

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Um Machado universal é o que se pretende entregar ao leitor, mostrando “autor em formação” a “autor consagrado”, com os contos desfilando cronologicamente, em cada seção (eixo), precedidos de comentários, que por sinal podem (e devem!) ser lidos após a (re)leitura dos contos daquela seção.

Os especialistas podem aprofundar a esse procedimento novo, com a finesse da pesquisa.

O primeiro posfácio é assinado por Valdiney Lobato de Castro, autor da tese de Doutorado “Entre críticas e aplausos: os caminhos da consagração dos contos machadianos”, onde mostra a presença de Machado de Assis na imprensa de sua época, a oitocentista, marcando “uma presença ubíqua, desde muito jovem – e não apenas como homem de letras, mas também como personalidade.”

As imagens do livro, que são de grande riqueza e ineditismo em livro, foram recolhidas por Valdiney em sua pesquisa.

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A Felipe Rissato, pesquisador independente, devemos, neste belo volume mais do que as fotos do autor (capa e miolo) montadas com zelo pela editora Filocalia.

Também ao Felipe deve o leitor especialista alguns acertos de contas quanto a datas, ineditismo e incompletude de “obras ditas completas” de Machado. A sua ênfase nos poemas, levou o pesquisador a encontrar uma pepita.

O poema inédito “Ao Júlio”, datado de 30 de maio de 1863 foi encontrado por Rissato na Coleção Paulo Tacla da seção de manuscritos da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) – ver fac-símile.

Antes de finalizar, no entanto, é preciso considerar que, se estiver certa a hipótese do organizador deste volume de contos, esta nova antologia irá, sim, “desenvolver um conceito de clássico” pois alimentará a leitura lenta, reiterada e intensa por parte de uma nova geração de leitores que devem enxergar aqui “radical plasticidade”, onde podem transitar “formas múltiplas e uma pluralidade de recepção”.

É o que vem ocorrendo com este cronista. E o que desejo a você, leitor.


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[i] Sobre João Cezar de Castro Rocha, o organizador: É professor titular de Literatura Comparada na UER). Graduado em História e mestre e doutor em Letras pela mesma instituição, fez um segundo doutorado em Literatura Comparada na Stanford University, EUA. Realizou estudos de pós-doutorado na Freie Universität e na Princeton University. Recebeu em 2014 o prêmio Ensaio e Crítica Literária da Academia Brasileira de Letras, e em 1998, o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional. É editor-executivo da revista Portuguese Literary & Cultural Studies, publicada pela University of Massachusetts-Dartmouth. Foi fellow da Universidade de Winsconsin, do Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford, do St. John’s College da Universidade de Cambridge e da Beinecke Library da Universidade de Yale; também ocupou a Cátedra Machado de Assis da Universidad del Claustro de Sor Juana, México. Conduziu com Pierpaolo Antonello a entrevista com René Girard que originou o livro Evolução e Conversão (Prêmio Aujoud’hui, França, 2004; traduzido para sete idiomas). É organizador de mais de vinte títulos, incluindo uma coleção em seis volumes dos contos completos de Machado de Assis. Tem participado do júri de importantes concursos literários do Brasil e do exterior, como o Prêmio Clarice Lispector (Biblioteca Nacional) e o Prêmio Portugal/Telecom. Assina uma coluna mensal na revista Veja. É o atual presidente da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Na É Realizações Editora, coordena as coleções Biblioteca René Girard, Biblioteca José Guilherme Merquior, Biblioteca Textos Fundamentais, Biblioteca Humanidades, e Logos (Mário Ferreira dos Santos).

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4 comentários em “Machado e a plasticidade do clássico”

  1. Possuo muito poucos livros de Machado em papel mas dele sou ávido leitor, tendo portando abertos no Kindle em obras completas, os Romances, os Contos e as poesias. Li tudo, mas é como se não tivesse lido, porque os volumes ora estão em 100 %lidos, ora no início ou a meio, tal a frequência que são abertos “au hasard” e lentamente degustados como se fossem irresistíveis licores! Faltam-me Teatro, Cronicas, Críticas e Folhetins. O livro de João Cézar é ultra desejável!
    Muito obrigado, caríssimo, pela excelente e informativa coluna!

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    • Olá, Nelson:
      De fato, quando se gosta de um autor, como gostamos de Eça ou de Machado, ou de Balzac ou Stendhal, os livros em Kindle viram uma bagunça divertida, por os abrirmos ao acaso.
      Aprecio sua vinda e seus comentários.
      Abraço fraterno do Beto.

      Responder

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