O bolo da cereja

Farrel Kautely

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Toda família tem suas próprias tradições, costumes que tomam como cultura própria.

Coisas como amigo oculto todo natal, almoço na casa da matriarca todo domingo e deserdação de familiares gays, ateus ou que acham que tem algo de errado com os bolsonaro.

A minha gosta de comemorar aniversário de todo mundo. Em todo aniversário tem bolo, e todo primeiro pedaço de bolo deve ser dado pelo aniversariante para a pessoa que mais ama na vida.

Quando eu era criança achava isso legal, mas à medida em que fui crescendo, fui me dando conta de que é há uma rede de complôs, conspirações e panelinhas envolvendo essa tradição.

Minha tia Kelem não fala abertamente, mas deixa no ar a sugestão de que os presentes de dia das crianças são melhores para quem dá o primeiro pedaço para ela.

Houve uma vez em que meu tio Luciano ficou vários meses sem falar com uma prima minha que faz aniversário no dia 27 de dezembro. Ela (ou alguém) espalhou o boato de que o primeiro pedaço seria para o Zé Lu e ele deu para ela um presente de natal e ainda outro no dia do aniversário, fazendo alarde de que sempre a tivera como sobrinha favorita.

Eu tive de sair da sala e me esconder para poder rir da cara de perplexidade dele quando a Rayane deu o primeiro pedaço para minha avó.

Às vezes a disputa pelo primeiro pedaço chega a provocar conflitos sérios.

Foi mais ou menos por isso que tentei tirar da cabeça da minha esposa a ideia de fazermos uma festa para mim no meu último aniversário. Ainda mais quando, na medida em que a data de aproximava, eu notava que recebia mais mensagens e visitas que o normal.

Tive certeza de que estava rolando bajulação quando meus parentes começaram a falar que leram esse ou aquele livro meu.

As abordagens mais direta rolaram no dia da festa. A primeira foi do meu irmão.

— Tô reparando aqui que a mesa tá enfeitada, mas tá faltando o bolo.

— É que encomendei ele na padaria do Alberto — falei. — Vou buscar daqui a pouco.

— É bolo de quê?

— Sei lá. Mas tem uma cereja no topo.

— Eu adoro cereja. Eu li seu livro.

— Qual deles?

— O da pulga. Gostei bastante, mas vi que não tem meu nome da dedicação.

— Pois é, não é?

— Poxa, eu te emprestei dinheiro pra publicar ele e você nem dedicou pra mim. Bem que podia me dar o primeiro pedaço do bolo hoje pra compensar.

— Até que é justo — falei. — Falando nisso, acho que vou lá buscar ele agora.

Deixei meu irmão sorrindo satisfeito consigo mesmo e fui indo pra fora da casa. Mal mudei de cômodo e fui abordado por um primo.

— E aí, Farrel? A quanto tempo, mano!

— Colé, cara!

— Eu tava vindo pra cá e vim pensando, caralho, a última vez que vi o Farrel foi quando ele mandou mensagem no grupo da família perguntando quem podia ir buscar ele no meio da rodovia porque o pneu da bicicleta dele estourou.

— Aquele dia foi louco. Agradeço mais uma vez.

— Não precisa agradecer cara. A propósito, o bolo da festa é de quê?

Quando eu estava voltando com o bolo nos braços passei em frente à barbearia do Jonas, que está sendo reformada. Avistei pouco à frente o buraco que tinha aprendido a evitar há semanas e me ocorreu que seria muito conveniente me esquecer dele por um instante.

Quando cheguei em casa entreguei a cereja pra minha esposa na frente de todo mundo que me parou pra comentar as coisas maravilhosas que fizeram por mim.

— A única coisa que salvei do bolo foi isso — falei, depois de encenar o tropeção no buraco.

A decepção ficou estampada na cara de muita gente até minha esposa abrir o armário, pegar um pacote de farinha e dizer que ia fazer um bolo rapidinho.

— Não precisa — falei para ela —, já tem muita coisa de comer.

— Eu não comprei uma vela que solta faísca à toa. Só não sei o que vou colocar na massa.

— Coloca essa cereja aí — meu irmão sugeriu. — Adoro cereja.

Deixei eles se virarem com o bolo novo e desapareci quando começaram a falar em cantar parabéns.

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