A saudade sob as luzes

Charlene França

A saúde esperada para o corpo sem a beleza da mente sã

O espaço no sofá permanece ocupado e já não comporta o sentimento de falta. Falta da rotina dos corredores, ruas e praças lotadas e dos livros que não chegarão a ser comprados e lidos, assim como das exposições e dos novos contatos nas agendas ainda em branco. A festa literária internacional de Paraty (FLIP),  uma das mais importantes do Brasil, teve sua programação adiada para o mês de novembro de 2020 e pode ter sua primeira edição virtual, com apenas algumas “ações símbolo” na cidade, além de acontecer sem curadoria. A autora homenageada, Elizabeth Bishop, também deixará de ocupar lugar de destaque nos festejos após a polêmica causada por ser a primeira autora estrangeira a ocupar a posição, além do apoio evidente ao golpe de 1964. Os palcos estarão vazios, as luzes à beira mar apagadas e as poesias declamadas entre pedras não serão ouvidas como de costume. Ao menos na sua totalidade. Ao menos até uma próxima edição.

Da mesma forma, a Bienal Internacional do livro, que reúne grandes nomes da literatura nacional e internacional, e promove a interação entre autores reconhecidos, iniciantes e leitores de todo o Brasil. e que este ano aconteceria em São Paulo, teve também a sua edição suspensa, passando a acontecer somente em 2022, após a aguardada edição carioca, se 2021 for  mais sorridente para amantes e profissionais do livro. Enquanto isso, os corredores do Anhembi permanecem vazios.

Nos palcos e diante das mesas de debate somente apresenta-se a saudade. Dos barulhos, músicas, conversas e palavras de estímulo. As demais feiras e eventos literários, também de fundamental importância pra quem lê, pra quem quer vender e quer ser lido, e que proporcionam tanta proximidade e conhecimento, foram os primeiros a isolar-se, e ainda não é possível saber a partir de quando o “novo normal” será normal de fato para a literatura e para a arte. Permanecem em branco muitas das primeiras participações de autores, livros por vender e os encontros permanecem limitados à frieza das telas, links e janelas em que a aglomeração já quase não permite um lugarzinho e nas quais as muitas falas se dispersam.

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Têm sabor de falta os textos, papos descontraídos e cursos inumeráveis. Enquanto isso,  aprendamos o que é storytelling e conheçamos mais e mais profissionais da área tentando reinventar encontros e histórias já contadas. A adaptação é difícil e já dura meses. Faz falta até mesmo as grandes filas, os ônibus e BRTs lotados, as bolsas repletas de sonhos e motivação e até as longas horas de viagem. As próximas páginas ainda estão em branco, preenchidas apenas pela saudade daquilo que a gente não viveu ainda.

A literatura, como salva vidas em um mar de afogados, sem encher os pulmões e se nutrir do cotidiano, das ruas e do mergulho nas experiências, tenta não definhar e se redesenha. Sobrevive dos projetos e centenas de lives e caminhos virtuais, até que as ruas estejam abertas, o palco liberado, a plateia segura e, enfim, ela possa novamente movimentar-se livre, leve e autônoma pela boca do povo, onde vivem os assuntos que merecem as melhores histórias e os mais expressivos recursos.

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