O sindicato das panelas

Thiago Kuerques

Na animação baseada no tradicional conto francês La Belle et la Bête, os candelabros, xícaras e outros utensílios domésticos ganham vida. Como na animação da Disney, a panela tipicamente brasileira sofreu a mutação e tornou-se um ser doméstico com personalidade. Castigada em 2016 por uma classe média ressentida, as panelas também foram castigadas por uma classe média golpeada por Temer. Agora, em pleno desgoverno antidemocrático fundamentalista e violento, foram as panelas que vieram a público em um ato articulado de protesto.

A primeira panela é vermelha, Le Creuset, e servia – que verbo mais ultrapassado – em um apartamento espaçoso no Leblon a uma família de classe alta. Por medo de perder o conforto, por vingança aos porteiros, ela não suporta a existência dos pobres. Tanto que gostaria que eles fossem proibidos de frequentar a sua querida e intocável orla. Obviedade: a dona da panela nunca encostou nela. Só a cozinheira, moradora do Vidigal.

A segunda panela, de ferro, servia na Tijuca. É no lugar que a água forma os mais impressionantes defensores da meritocracia, empreendedores que não enxergam as condições favoráveis em que se situam desde o nascimento, seguidores dos discursos do Leblon, mas se metem em metrô lotado reclamando “desse pessoal que vem da zona norte e da baixada”. Obviedade: os donos da panela já encostaram nela vez ou outra, mas preferem delivery.

A terceira panela, essa de aço escovado, servia no centro de Resende, cidade do interior do estado do Rio. A mulher que a comprou e depositou no apartamento confortável até fazia, vez ou outra, alguma comida. O problema era ter dado tantas surras na panela que caiu em desuso. A moça se achava rica, temia perder sua fortuna (os dois carros populares, o apartamento herdado dos falecidos pais e uma sala comercial em Itatiaia), como se estivesse muito mais distante da classe baixa e muito próxima da classe dos milionários.

A quarta panela, também de aço escovado, servia em São João de Meriti. A família formada por militar da reserva e microempresária, além dos filhos concurseiros, era ativa na época das batidas de panela bradando contra a corrupção, pedindo por um Brasil melhor. Acabou elegendo um Brasil muito pior. Ele a qualquer hora será chamado para trabalhar, ela viu o negócio próprio quebrar. Os filhos não sabem o que fazer já que não abre concurso por nada.

A quinta panela nunca fez um mocotó que se preze. Servia no Palácio das Laranjeiras muito prato elegante e ouvia as piores barbaridades. Acompanhou o desenrolar da conquista dos Jogos Olímpicos para a cidade do Rio, vários encontros questionáveis, contratos superfaturados e muitas gargalhadas debochadas, principalmente quando viam Suzana Naspolini reclamar de locais onde o governo finge que chega. Me divirto com ela, disse um antigo mandachuva, hoje cheio de processo nas costas.

A sexta panela fala inglês, mais precisamente o britânico. Servia brasileiros que foram morar em Londres e, na distância, parecem muito com os tijucanos. Adotam discurso de conquistas, de que no Brasil nada presta, de que os europeus são exemplos de tudo e também colocaram um tio do churrasco no cargo mais importante do país. Mas lá de longe eles seguem a vida do Brexit, enquanto o resto segue tomando martelada no “cocuruto” dia a dia.

A sétima panela, que não é sétima arte, é feita de barro, é do interior do Mato Grosso e faz comida para muita gente em estado de miséria. A ela nunca é destinada a capa do jornal, a inclusão nas estatísticas, sequer parece fazer parte do Brasil. Não quer ir ao Rio nem para conhecer a cidade dita maravilhosa. Prefere o Pantanal. E tá errada?

Todas fundaram o sindicato das panelas. O lema é: ninguém bate em vão. O problema é que agora parece ser tarde demais. Ninguém mais bate panelas. Agora disparam outras armas.


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