É preciso reconhecer que os demônios dos outros somos nós

Thiago Kuerques

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Em crônica publicada no Le Monde Diplomatique, Eduardo Galeano traz o seguinte:

Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497, eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo. (2017, GALEANO).

Podemos concluir que, no final das contas, é insuportável avistar o outro. Para os antiquados – num eufemismo covarde – o diferente é uma abominação que, se não entra em sua compreensão psicológica e no seu entendimento de mundo, deve ser exterminado. Neste caso o diferente, o pitoresco, o fora de contexto conhecido por quem vê, é um demônio. Tratando assim, como inimigo execrável apenas por ser diferente, há uma facilidade maior na reação violenta. É assim com a mulher, “detentora do pecado da carne”. Com muçulmanos, os “anticristos”. Com judeus, principalmente para os “arianos”. Com os índios, para os chamados conquistadores e exterminadores. Com os negros, para uma elite branca e rosada e não só elas. Para os latinos, principalmente para os estadunidenses e os conservadores europeus. Com os estrangeiros, sobretudo para grande parte dos países do autointitulado “Velho Continente”. Com os homossexuais, para heterossexuais da Idade Média e que perduram pelo século XXI. Com, sobretudo, o pobre, para o mundo inteiro. Todos são acusados por “gente de bem” de serem os demônios. Em todos esses casos, os demônios são apenas projeções das frustrações de gente ruim.

Em seu célebre livro de viagens, Marco Polo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”. São apenas, afinal, diferentes do padrão fenotípico ao qual Marco Polo estava acostumado a conviver.

O que são os teus demônios e o que eles têm a ver comigo? Os demônios, ao contrário de alguns anjos, mudam de vestimentas a cada era. Por isso tem as diversas faces citadas anteriormente, segundo brancos de vidas confortáveis. “Mas a Bíblia diz…” tantas coisas, amigos, que nem sei mais o que pensar. Não quero desmerecer crenças, mas temos que levar em consideração que tudo sempre foi questão de interpretação e respeito. E temos que levar em conta também ser um livro escrito há mais de dois mil anos, denominando sob sua perspectiva os seus demônios da época.

O demônio que a gente busca enxergar não está nos outros, não são os outros, possivelmente jamais serão os outros. Marco Polo, se navegasse hoje, teria medo de quê? Portanto, reconhecer que cada um de nós, inclusive o papa, o pastor, a mãe de santo, a curandeira, a doadora, o benfeitor, o mártir, possui seus próprios demônios é a melhor forma de começar a sair desse inferno. Reconhecer, afinal, que os demônios dos outros somos nós mesmos. São nossos traumas, nossos medos, nossas frustrações. O medo, principalmente, do desconhecido. Ficamos com Terêncio, que diz que “eu sou homem e nada do que é humano me é estranho”. Ou com a interpretação da escritora Elisa Fernandes, que reflete que “tudo que me é estranho, me é familiar”. Neste caso, o outro somos nós.

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