A paz, a ficção e a guerra

Carlos Eduardo Heinig

A Literatura, sempre que possível, e desde os tempos homéricos, tem procurado imitar a realidade. O leitor, por mais que se espelhe nos miroirs magiques borgeanos, vez por outra, prefere ver sua vida (ou pedaço dela…) dentro de um romance ou de uma novela. Guerra e Paz é um exemplo interminável.

Embora, felizmente, a maioria dos cidadãos não tenham visto a Guerra no século XXI (ao menos, não em forma de conflito mundial), tem dado – diariamente – com a paz. Esta, como se vê em Tolstoy, nem sempre é tão bela quanto o homem moderno imagina. A poluição, a intoxicação, os males psicológicos, as doenças degenerativas são consequências da paz absoluta.

Muitos foram os autores que mostraram as agruras da Guerra: com devido relevo aos do anterior: desde Sartre a Camus, de Fitzgerald a Beckett. De Hesse a Mann. E muitos têm mostrado a paz atualmente: Updike, Foster Wallace, e o mais profundo, entre eles, é António Lobo Antunes. Seus romances mostram uma paz quase ameaçadora, de um indivíduo em silêncio, a contemplar a própria desgraça. Tudo isso em pura paz. Ele, Lobo Antunes, é um dos maiores herdeiros da paz de Tolstoy.

O escritor, em seu ofício, está em frente à realidade a todo instante. Ele é o mecanismo que converte aquilo em ficção. É o ficcionista. Há os geniais, como diz Steiner sobre Nabokov, que criam o que já existe. É o caso das Lolitas, como George exemplifica. Elas sempre estiveram por aí, mas só se deu conta quando foram ilustradas num romance. O autor deste ensaio ousa acrescer a doença dos tempos atuais: o oblomovismo.

A pandemia do momento, do coronavírus, criou um modus vivendi (que, também, sempre existiu): o do indivíduo que se mete em um robe de seda e passa o dia inteiro a fazer nada, sem vontade de qualquer coisa. Consiste naquele que só come e lamenta. Alguns casos são, de fato, sérios e merecem atenção, pois constituem frutos de uma depressão maior (resultado da ‘paz’). Outros, são meramente vagabundos que se aproveitaram do momento para usufruir do ócio e da inutilidade. Eis um problema da paz: sua inutilidade. Não produz arte, não produz ciência. É apática.

O fato é que o oblomovismo surgiu antes de Tolstoy ou Dostoievsky. Provém da obra Oblómov, do russo Ivan Gontcharov. Ele cria uma personagem que sempre existiu. Até aqui, está-se de acordo com Steiner. Mas, a Literatura (e sua intelligentsia) só se deu conta de sua existência quase dois séculos depois. Às vezes, a genialidade da personagem fica latente por séculos e até milênios. Encoberta por algum fator temporal mais evidente ou vigoroso. É aí que a ficção deixa de ser ficção e assombra o leitor.

Casos clássicos são as obras 1984 e Admirável Mundo Novo, de Orwell e Huxley respectivamente. Ambos causam pavor e ojeriza no leitor desde que foram concebidos. Todavia, não há nenhuma novidade neles. E o leitor que espera isso para um futuro aparente está equivocado. Os dois romances retratam o que vem acontecendo desde os egípcios. Afinal, o ser humano sempre foi espionado, censurado, torturado e usado como cobaia em testes de controle populacional, desde que desejou fazê-lo com o outro; ou seja, sempre. Se há personagens tais como ‘grandes-irmãos’ por trás, não importa. O fato é o que aí está.

A ficção cria a realidade, cristalizada, tal como a vemos; porque ela é basicamente constituinte da realidade. Sem os tipos lado a lado e as páginas em ordem numérica, é impossível de se ter uma história. Cortázar tentou algo assim em Rayuela, mas fez um mapa para o livro. Isso não quer dizer que a realidade seja cartesiana. E que se precise de mapas mentais ou coisa que o valha para contemplá-la. É mais fácil, então, afirmar que ela não existe e que tudo é ficção. Isto é bem mais plausível. Tanto que é possível converter tudo em ficção (até a ficção), mas não o contrário. A ficção não almeja ser pura realidade.

Ora, então por que a primeira afirmação do ensaio? De que a Literatura procura imitar a realidade? Muito bem. Ela ‘procura’. Mas não imita. Ela é ficção e torna a realidade em ficção. Trata-se de um meio poroso, osmótico, por onde perpassa realidade (ou a ilusão de uma) e ficção.

Na maioria da poesia, isso já é difícil. Especialmente, quando consiste em métrica clássica, em que se busca o metafísico. A Metafísica exigiria outro ensaio (desnecessário). Desde Platão e Aristóteles, ninguém tem descrito melhor a Arte Poética e suas relações com a Metafísica.

A grande possibilidade ao leitor é a dicotomia. Aceitar a realidade como ficção e esta, como realidade. Assim, ele também permanece em um limbo seguro, donde pode extrair outras coisas dignas de nota na obra literária. Trata-se de uma questão a esmo, tal como o livre-arbítrio versus a predestinação. Estes destinos podem acontecem simultaneamente, ou ser o gatilho um do outro.

Guerra e paz. Editora Nova Fronteira.

Se toda Arte nunca houvesse existido, nunca tal pergunta seria colocada. E todos os críticos literários estariam confortáveis e oblomóvicos. Mas, a verdade é que a Ciência também não faz a menor ideia se a luz constitui-se de onda ou partícula. Se é matéria ou não. Se é matéria ou ilusão. E poderiam, os cientistas, ter ignorado isto e continuado confortáveis. Não obstante, a luz não foi ‘inventada’…

Portanto, eis que a arte (poderia estar antes) está ali… E não se sabe se ela imita a vida. Ao que parece, sim. Mas, as análises são vagas. Porque as personagens de Faulkner ou de García Márquez são tão reais quanto a minha mãe e avó, que estão mortas! Fica claro que nenhum deles está aqui presente, em nossa realidade. Porém, é possível ressuscitar as personagens dos dois autores na hora que o leitor assim o desejar, basta que os leia. Quanto à minha mãe e avó, a prova de sua existência e realidade foram os anos tantos que por aqui pisaram.

O que não se pode conceber é o porvir. A pessoa que não nasceu e que nunca trilhou este mundo, nem constituiu parte da realidade não existe. E tampouco se pode conceber a personagem nunca inventada. Nem, ao menos, imitada. Neste ponto, pois, Arte e vida, realidade e ficção são iguais, porque precisam de imagens, precisam de ‘fenômenos’, usando-se de um tom mais kantiano.

Guerra e Paz pode não ser o romance mais agradável nem o mais lido. Nem mesmo, o mais profundo. Mas, com certeza, é o que clarifica a realidade da ficção, o que confere verossimilhança entre elas. O cidadão do século XX, amedrontado por distopias, precisa entender e combater essa ‘paz’ romana, que o intoxica e o mata, degenerando-o. Essa ‘paz’ consumistas e oblomovista. Essa ‘paz’ das conspirações, do males inventados. É preciso ser célere; pois, logo, criar-se-á uma nova ‘paz’ e – para atingi-la – será necessária uma guerra. Se vis pacem, para bellum.

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