O tempo do vírus e o nosso tempo

Frank Wan

Eu ainda vinha com a “noção de tempo” de quem corre nas grandes cidades, abro uma porta apressadamente para tentar despachar a consulta oncológica no hospital, deparo-me com um senhor idoso que quase foi abalroado com a minha forma bruta e apressada de querer atravessar as portas, ele percebeu que eu estava no início do processo, era um neófito das doenças graves e diz-me “aqui é tudo com calma, a primeira coisa que muda aqui é a nossa noção de tempo” e acrescentou “sabe? aqui revemos as nossas conceções”. E seguiu algaliado em busca de uma varanda vaga para fumar o cigarro da tranquilidade dos condenados à estagnação e morosidade hospitalar.

Nunca esqueci aquela figura em robe, nos hospitais e nas casas de putas (puteiros) perdemos o pudor, e aquela frase pareceu-me vagamente familiar.

Este escaravelho que invadiu o planeta também veio alterar a nossa noção de tempo, até há “um novo normal”, eufemismo para a anormalidade total. Parece que a nossa vida está parada… e está mesmo…e mais, está parada a vida de toda a gente, nem há mais vida como a tínhamos, agora teremos uma nova vida, se sobrarmos de muitas mortes.

Quando ela disse ao cirurgião oncológico “a minha vida acabou”, ele respondeu “não, o que acabou foi a tua vida cor de rosa, o cancro acaba com as vidas cor de rosa que temos na nossa mente e dá-nos uma nova vida”.

Sim, dr. Miguel Villares, acabou a nossa vida cor de rosa, os contos de fadas que tínhamos nas nossas cabeças, os restaurantes apinhados, a sofreguidão da viagem pela viagem, o consumismo vazio, agora teremos uma nova vida possível e muitas mortes.

Vamos todos rever a nossa noção de tempo, de agenda, do que significa sentir que a vida está a progredir.

2021 ia ser melhor que 2020, disseram os viciados em felicidade, mas temos de rever a noção de tempo.

Para já vamos tentar sobreviver biologicamente, depois teremos o problema da situação económico-financeira e depois veremos em que novo mundo aterrámos.

O tempo do vírus e o nosso tempo

Hoje, deitado, curtindo as manhãs frias e a melancolia das minhas ausências, lendo A Montanha Mágica, percebi de onde o senhor idoso algaliado tinha tirado a frase, só nunca pensei que a humanidade toda fosse viver nesta montanha mágica, sinto que vivemos todos num grande hospital.

“- Ah, o tempo – disse Joachim, balançando a cabeça várias vezes, sempre em frente, sem se preocupar com a notória indignação do primo. “Eles não se importam com o tempo humano, nem vais acreditar no que vês. Para eles, três semanas é apenas um dia, vais ver. Vais aprender isso tudo”, e acrescentou: “Aqui, revemos as  nossas conceções”.

Thomas Mann, A Montanha Mágica

Para já resistiremos, depois teremos uma vida diferente da cor de rosa imaginária do antigo normal.

Mas teremos de rever os nossos valores…

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.