Hipertexto: uma evolução nas formas de escrita e leitura

Verônica Daniel Kobs

Na Internet, o hipertexto consolidou-se como uma forma democrática de texto, que sugere aprofundamento, mas sem abandonar a síntese e a objetividade. Em tese, o hipertexto é um tipo de cibertexto (ou seja: um texto feito com os recursos cyber — da informática) que faz uso dos hiperlinks para ampliar o número de informações a que o leitor pode ter acesso, se assim desejar. Isso define um novo status para o leitor, que pode escolher o percurso de leitura, libertando-se da linearidade e da imposição dos conteúdos dispostos em textos de camada única.

Na literatura ou nos textos informativos, os hipertextos já são uma tendência, como demonstra este exemplo, de um verbete da Wikipédia sobre a série The crown (Fig. 1):

Hipertexto: uma evolução nas formas de escrita e leitura 1
Figura 1: Hipertexto da Wikipédia sobre a série The crown.
Imagem disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/The_Crown_(TV_series)>.

Na tela acima, os hiperlinks predominam, pois são usados no menu lateral (à esquerda), dentro do próprio hipertexto (verbete) e no box que reúne as principais informações técnicas sobre a série (à direita). Convencionalmente, os hiperlinks são identificados pelo leitor pela cor azul e/ou pelo sublinhado. Entretanto, quem produz o hipertexto pode variar as cores e usar ou não o sublinhado como modo de personalizar o leiaute de sua publicação, de acordo com a empresa, a marca ou o estilo pessoal.

Originalmente, os hiperlinks remetiam o público a outros textos verbais. Entretanto, hoje em dia, os hiperlinks de um mesmo texto podem levar o leitor a diferentes mídias (músicas, vídeos, fotos, etc.). Esse processo acentua a multiplicidade e o alcance do hipertexto, de acordo com esta afirmação, da autora Lúcia Santaella: “A possibilidade de combinar texto e outros tipos de signos em hiperambientes descentraliza a hierarquia linear e reconceitualiza a dimensão gráfica do texto” (SANTAELLA, 2012, p. 236). Sendo assim, se, no início do hipertexto, o fato de incluir vários hiperlinks, que possibilitavam o acesso a outros textos verbais, já era considerado uma evolução, quando atentamos para a diversidade de mídias e artes que pode ser revelada, por meio dos hipertextos mais atuais, esse aprimoramento do texto impresso torna-se ainda mais relevante e promissor. Aliás, considerando que, na década de 1970, Roland Barthes reclamava das limitações do texto literário, podemos aventar a hipótese de que o hipertexto veio para tentar suprir as necessidades descritas pelo crítico:

Interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos fundamentado, mais ou menos livro, é, pelo contrário, apreciar o plural de que ele é feito. Suponhamos a imagem de um plural triunfante […]. Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e jogam entre si sem que nenhuma delas possa encobrir as outras; esse texto é uma galáxia de significantes […]; não há um começo: ele é reversível; acedemos ao texto por várias entradas sem que nenhuma delas seja considerada principal; os códigos que ele mobiliza perfilam-se a perder de vista, são indecidíveis […]; os sistemas de sentido podem apoderar-se desse texto inteiramente plural, mas o seu número nunca é fechado, tendo por medida o infinito da linguagem. (BARTHES, 1999, p. 13, grifo no original)

Evidentemente, ainda não chegamos ao ponto pretendido por Roland Barthes. Apesar das significativas alterações que o hipertexto implementou, na escrita informativa ou literária, ainda não temos um texto sem um começo propriamente dito. Do mesmo modo, as entradas que possibilitam acesso a diferentes conteúdos estão longe de ser infinitas. Pelo contrário: elas são finitas e predefinidas pelo autor. Nesse sentido, a liberdade do leitor ainda não é plena. Ainda assim, não deixemos de louvar a possibilidade que nos é dada — de decidir quais hiperlinks devemos abrir, e quando. Quando desvendamos esse processo estrutural do hipertexto, impossível não perceber a semelhança entre os hiperlinks e as notas de rodapé ou de fim. As notas também são elementos opcionais na leitura. Porém, há uma diferença crucial entre elas e os hiperlinks: as notas não podem ser ocultadas (elas aparecem concretamente, no rodapé da página ou ao final do texto), ao passo que os hiperlinks apenas indicam que há mais informações a respeito de determinado tema, sem revelar o conteúdo (os textos associados aos hiperlinks não são visíveis em sua totalidade).

A quantidade de informações em um hipertexto é imensa e se opõe completamente ao volume do texto principal, que condensa vários subtextos por meio dos hiperlinks. Nesse sentido, as características desse novo modelo textual refletem a sociedade contemporânea, afinal, “hoje, o tempo não é mais linear, mas sim, fragmentado” (TESSMAN, 2013). Além disso, é importante destacar que “o hipertexto não permite uma voz tirânica e unívoca” (LANDOW, 1992, p. 11). Em vez disso, ele privilegia a pluralidade de temas, a variação de níveis de aprofundamento e as escolhas de cada leitor.

Na literatura, um dos primeiros hipertextos foi criado por David Herrstrom, em 1996. Antes dessa data, o autor já tinha tentado concretizar sua ideia no formato impresso, mas desistiu, pelas limitações inerentes àquele suporte tradicional. Porém, com o alastramento da Internet, seu projeto pôde ser realizado no ambiente digital, dando origem ao hipertexto To find the white cat in the snow (Figs. 2, 3 e 4), que pode ser acessado na íntegra, neste link: https://www.cddc.vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.html.

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Figura 2: Tela principal do hipertexto To find the white cat in the snow (1996), de David Herrstrom. Imagem disponível em: <https://www.cddc.vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.html>.

Nesse hipertexto, a primeira tela traz cinco hiperlinks, um na cor preta e quatro na cor branca. Aliás, o uso dos hiperlinks dialoga com a ludicidade do título, afinal, convidando o leitor a achar o gato branco na neve Herrstrom faz referência à principal característica de qualquer hipertexto: esconder conteúdos que podem ser bastante vastos sob uma palavra breve e quase insuspeita. Portanto, clicando sobre cada uma das cinco palavras/hiperlinks da tela de abertura, o poema ganhará cinco desdobramentos distintos, mas complementares (Fig. 3 e 4):

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Figura 3: Texto resultante do hiperlink “stone”, indicado na primeira tela do poema.
 Imagem disponível em: <https://www.cddc.vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.html>.
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Figura 4: Texto resultante do hiperlink “water”, indicado na primeira tela do poema.
 Imagem disponível em: <https://www.cddc.vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.html>.

Como demonstrados nas imagens 3 e 4, os hiperlinks desdobram o texto principal, dando a ele inúmeras vertentes, as quais também são múltiplas e oferecem ao leitor novos hiperlinks, que, por sua vez, irão gerar novos versos, com outros hiperlinks (mise en abyme), e assim sucessivamente...

Depois da experiência feita por Herrstrom, o hipertexto iniciou uma jornada,de mais de dez anos, período em que foi incorporando não apenas subtextos verbais, mas também de outras naturezas — imagética, sonora e audiovisual. Além disso, dando mais um passo, o hipertexto aboliu a marca gráfica dos hiperlinks, como exemplifica a net art denominada Into time (2010), criada por Rafaël Rozendaal (Fig. 5):

Hipertexto: uma evolução nas formas de escrita e leitura 5
Figura 5: Tela principal (Tela 1) do hipertexto Into time (2010), de Rafaël Rozendaal, e dois desdobramentos gerados pela ação do espectador, por meio do mouse (Tela 2 e Tela 3).
Imagem disponível em: <http://intotime.com/>.

O hipertexto de Rozendaal é feito apenas de cores e formas geométricas. Ao acessar a obra, o espectador se depara apenas com um imenso retângulo colorido, que ocupa toda a tela (Tela 1).  Não há nenhuma palavra, nenhum hiperlink. Contudo, o leitor curioso e ativo, ao fim de alguns segundos de espera, cede ao instinto e, por meio do mouse, com apenas um clique, descobre que o texto oferece muito mais sob aquele retângulo. Contribuindo com o texto e estabelecendo uma espécie de coautoria, o leitor vai modificando a tela inicial, pois, a cada clique, surge uma nova forma geométrica e novas cores. Dessa forma, o leitor assume o controle da obra e estabelece seu próprio ritmo de atuação, que irá definir uma tela mais ou menos fragmentada, com quadrados e retângulos que se alternam, em uma superfície multicolorida (Telas 2 e 3). Aliás, pela ação do espectador, ocorre uma inversão total nos elementos do hipertexto: as inúmeras possibilidades que jaziam sob a tela principal saem da obscuridade e passam a ocupar o primeiro plano, quando a obra de Rozendaal dá lugar à obra criada por cada um de nós, quando decidimos interagir com o hipertexto, clicando em busca de resultados, em uma leitura que parecia estéril, mas que se revela plena de significados. 


REFERÊNCIAS:
BARTHES, Roland. S/Z. São Paulo: Edições 70, 1999.
HERRSTROM, David. To find the white cat in the snow. 1996. Disponível em: <https://www.cddc.vt.edu/journals/newriver/herrstrom/hypercat/maincat.html>. Acesso em: 28 mar. 2021.
LANDOW, George Paul. Hypertext. The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology. Baltimore; London: The John Hopkings University Press, 1992.
ROZENDAAL, Rafaël. Into time. Disponível em: <http://intotime.com/>. Acesso em: 28 mar. 2021.
SANTAELLA, Lúcia. Para compreender a ciberliteratura. Texto digital v. 8, n. 2, Florianópolis, jul.-dez. 2012, p. 229-240.
TESSMAN, Ramon. Explorando a Era Digital: Ciberespaço. 11 out. 2013. Disponível em: <http://ramontessmann.com.br/explorando-era-digital-ciberespaco>. Acesso em: 12 abr. 2016.


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