Milan Kundera e a demora dos instantes
Conheci Milan Kundera quando eu estava saindo de um polo universitário em Miguel Pereira. A caminho do ponto de ônibus com outros alunos, me deparei com livros sobre uma mesa de botequim escrito “pegue o que for ler”. Em vez de seguir, resolvi parar. Não sei por que agi daquela maneira, mas o fato é que parei e peguei, entre outros, A insustentável leveza do ser. Eu tinha 19 anos e nunca havia lido ficção na vida.
Para um rapaz saindo da adolescência, a obra cheia de erotismos do autor tcheco poderia ser um atrativo – e era. Mas o que me capturou no livro foi o dilema do protagonista Tomas. Ele havia conhecido Teresa numa viagem, dormiram juntos quando ela o visitou em Praga, mas a moça acabou tendo febre e precisou passar dez dias com o homem recém-conhecido. E agora eu via Tomas, um personagem cheio de amantes, solteiro convicto, com o coração mexido e diante de uma escolha: “devo ou não propor que ela venha se instalar em Praga? Essa possibilidade o assusta. Se convida-la, ela virá oferecer-lhe toda a sua vida”.
O livro parece girar em torno disso que Kundera chamou de “a chave da vida de Tomas” e que eu estou chamando de a demora dos instantes: a decisão, mais ou menos banal, que muda tudo. Há outros exemplos na vasta bibliografia do autor: o jovem comunista irônico que escreve um bilhete trocista em A brincadeira e é mandado para campos de trabalho forçado pelo regime comunista. O personagem autoficcional Kundera, em A imortalidade, que repara num aceno de mãos de uma mulher em frente a uma piscina pública – que não faz ideia de que está sendo observada – e cria Agnes. Os jovens parisienses do século XXI que saem pelas praças reparando nos umbigos expostos das moças e criam metáforas duradouras.
Ou como meu caso. Pois a chave da minha vida pode ter sido reduzir os passos em frente à mesa de botequim cheia de livros (em A Lentidão, Kundera escreve que, quando precisamos pensar, reduzimos a velocidade dos passos). Parar à frente daquela mesa e pegar uma obra do Milan Kundera mudou tudo? Fez eu ser quem sou hoje? Eu jamais seria escritor se não lesse um livro naquele dia?
O que posso dizer é que, desde então, eu me interessei, não por saber sobre a vida privada do autor (que costumou “se esconder por detrás dos livros publicados”), mas pela sua escrita. Uma escrita que se demora nos dilemas, apoiando-se na filosofia e na psicanálise, mas sobretudo nas palavras, polissêmicas ao extremo na pena de Kundera. Saí pelos sebos do Rio atrás da obra, e li praticamente tudo. Quanto mais lia Milan, mais aquilo me causava o desejo de escrever também.
Aquele instante em que escolho os livros ao ônibus (que perdi) ainda se demora no meu corpo, e a morte do meu escritor preferido não muda nada sobre a escolha que fiz, mas me faz pensar a respeito, se não seria eu, sujeito angustiado do século XX, mais um dos personagens kunderianos.
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Brilhante
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