Você não pode servir a dois senhores: a Deus e ao Desempenho
No livro “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Max Weber analisa como a teologia calvinista precipitou inevitavelmente a ascensão do capitalismo. A dúvida parece estar em se a ética protestante ocasionou o capitalismo ou se foi seu principal vetor. Para um sujeito das minhas latitudes, já é suficientemente desconcertante que ela não o tenha, no mínimo, colocado seus exageros sub judice.
Em “O Manifesto Comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels propuseram que, antes da ascensão do capitalismo, os seres humanos viviam “na mais preguiçosa indolência”; o sistema capitalista foi “o primeiro a mostrar o que a atividade do homem pode realizar”. Particularmente não acredito que apenas a “ética protestante” tenha gerado o capitalismo, mas que – como todo grande fenômeno histórico – em conjunto com outros fatores tenham criado o sistema capitalista.
E só para deixar claro: acredito que ascensão do capitalismo é um milagre – e como todo milagre –, é difícil de explicar e bom o suficiente para celebrar. Mas como nesse mundo o melhor, geralmente, chega a custas do pior, devemos ir adiante na questão.
Qual é exatamente o problema com a ética do desempenho?
Marx estava fixamente atento às questões políticas, econômicas e sociais de seu momento histórico. Ele viu que o trabalho estava passando por uma transformação fundamental. As fontes de riqueza estavam mudando, assim como as origens dos valores sociais. Previu (ainda que de maneira imprecisa) que na sociedade capitalista todos são mais cedo ou mais tarde transformados em trabalhadores automatizados; escravos de um sistema que com passar do tempo se tornaria autônomo. Ele viu não apenas a condição do trabalho, mas os valores sociais correspondentes que viriam a definir uma sociedade caracterizada pela atividade laboral, de modo que essa ação automatizada engoliria todas as outras ocupações, vocações e atividades humanas. Marx errou muito em sua filosofia política e principalmente econômica, mas nesse ponto ele realmente acertou.
Nossas vidas estão sendo cada vez mais definidas pelo trabalho, pela produtividade e pelo utilitarismo. Hoje, qualquer indivíduo que se aposenta se sente perturbado, perde o sono, o sabor e alegria de viver, porque estamos moldados pelo trabalho de tal forma que nada mais faz sentido sem ele. A pós-modernidade é um verdadeiro culto ao desempenho.
É disso que se trata a obra do filosofo Byung-Chul Han. Sua tese é que o mundo ocidental se tornou uma “Sociedade do Cansaço”.
Han faz uma análise patológica da sociedade, mostrando que ela sofre de uma série de males que variam de acordo com suas fases históricas. O século XXI é caracterizado por distúrbios neuronais, como depressão, Transtorno de Déficit de Atenção com Transtorno de Hiperatividade(TDAH), transtorno de personalidade limítrofe, síndrome de Burnout (Síndrome do esgotamento profissional), entre outros. Estas são doenças causadas por um excesso de positividade e, por isso, nenhuma técnica imunológica se mostra eficaz para combatê-las.
Nossa geração é caracterizada por uma compulsão à ação em todos os momentos. Nosso modo de consumo atual declarou uma guerra ao tédio; nosso modo de produção declarou uma guerra ao ócio. O desejo em uma sociedade de performance é sempre maximizar a produção de modo que não há ruptura entre a vida particular e o trabalho, por exemplo. O indivíduo está sempre buscando sua “felicidade” a todo custo; e isso nos leva à exaustão.
Em seu livro “Sociedade do cansaço”, Han, afirma: “O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado.”
O resultado é que nossa sociedade corre o risco de entrar em colapso sob sua própria compulsão de desempenho. Depressão, ansiedade e alienação são a ordem do dia. Nossa sociedade se tornou cansada e vive abeira do precipício de morrer de fadiga.
A essa altura, vale ressaltar um texto do Bom livro preto:
“Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho. Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus; não farás nenhum trabalho nele” Deuteronômio 5:13,14.
O dia em que um dos sete dias é descrito como “santo” (“o dia bom”) é o dia em que somos ordenados ao descanso. A “inutilidade” ligada ao Dia do Sábado tinha um significado muito mais profundo, bem como uma aplicação mais abrangente. O sábado em si era apenas um símbolo de todo um modo de vida. A “inutilidade” do sábado está profundamente ligada à questão da justiça e torna-se a base para a compreensão do Reino de Deus.
O Sábado ordenado por Deus a Antiga Israel era um meio de compreensão do tempo e da administração da criação. Um dia na semana foi deixado de lado e nenhum trabalho deveria ser feito. Um ano de cada sete também deveria ser deixado de lado e nenhum trabalho nos campos deveria ser feito durante todo o ano. Depois de sete ciclos de sete anos (um total de 49 anos), o quinquagésimo (50), deveria ser deixado de lado para terra descansar. A cada sete anos, não só a terra descansava, mas todas as dívidas deveriam ser canceladas. No quinquagésimo ano essas mesmas coisas se aplicavam.
No livro do profeta Isaías, essa imagem da gestão das dívidas e da terra recebe uma interpretação cósmica. O Ano Jubilar torna-se o “Ano Aceitável do Senhor”, o dia que toda a criação seria libertada, um Jubileu eterno – um descanso eterno – de tudo e para todos.
No evangelho de Lucas (4:16-21), Jesus escolheu essa passagem de Isaias para afirmar que “O Reino de Deus está próximo”. “Os pobres ouvem boas notícias”, os “prisioneiros são libertados”; “os cegos recebem sua visão”; “os oprimidos recebem liberdade”. Um jubileu cósmico estava sendo inaugurado.
Por isso que é extremamente paradoxal observar que a origem do culto contemporâneo da performance pode ser delineada – ainda que de forma imprecisa – até a teologia da Reforma Protestante. Basta você lembrar que um dos conceitos principais da Reforma foi “sola gratia” (“Graça somente”), para perceber como tudo isso é bizarro; nada pode ser mais avesso ao culto do desempenho do que o conceito da Graça de Deus.
Não desejo ser simplista. Sei que a graça é tão difícil de definir quanto de acreditar. Afinal de contas, crer em um Deus que não acolhe as pessoas pela consistência do seu desempenho religioso, ético, social ou profissional, mas unicamente pela sua graça, é no mínimo escandaloso. Mas não posso fugir dessa momentosa realidade.
Para Jesus, notáveis são os que não estão nem aí para o culto da performance; que vivem confortavelmente à margem dos valores do mundo; que vivem com a desconcertante certeza de que “pouco é necessário”; e que uma noite de sono, vale mais do que mil e uma noites de desempenho (sem trocadilhos, por favor).
O problema é que todos que temos acesso à internet e sabemos ler e escrever estamos por certo até o pescoço mergulhados nele. O culto ao desempenho é universal. Sem perceber nos dobramos a esse deus e o cultuamos; nos ajoelhamos diante do seu altar todos os dias e entoamos louvores e oferecemos sacrifício (acordei as 5; fui para a academia; concluir 1 livro e vim para o trabalho. Tá pago!). Vivemos sob a sombra onipresente do deus do deus do desempenho. O quadro clínico é praticamente irreversível.
Ou quebramos esse altar ao deus do desempenho ou seremos quebrados por ele!
Afinal, “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, e perder-se ou destruir a si mesmo” (Lucas 9:25; NVI)?
Nas palavras de Jesus não te servirá ganhar o mundo e perder a “alma”, a humanidade, a sensibilidade, a capacidade de valorizar o que é essencial.
Do contrário, a tragédia está garantida!