Sopra onde quer
O sentido da palavra espiritual desapareceu de minha vida. Não é sintoma de descrença ou um abandono religioso. É a desconfiança de uma integração completa com o mundo – que não quer dizer perfeita. Outro aspecto, é a satisfação com os gestos mínimos sem alguma grandeza aparente: a travessia da rua, o passeio na praça, o abraço de reencontro. Antes, tudo isso tinha uma ambição transcendente: nas ruas do Paraíso, eu imaginava, todas as coisas terão uma intensidade ainda maior. Desisti das sensações inéditas da vida perfeita e da meta salvação.
Em minha última vez na igreja, diante da relíquia de São Francisco de Assis, experimentei o incômodo da inconveniência diante das cinzas de um homem santo. O ofício da missa foi perfeito, a trezena de São Sebastião também e me pareceu uma impostura pedir qualquer coisa diferente para minha vida quando o exemplo inequívoco dos dois seria suficiente para a alegria dos homens. A de Deus, mais exigente que a nossa, não conseguiríamos julgar em termos concretos e inatingível em juízo, é preferível deixá-la para outras instâncias.
A igreja poderia ter desaparecido sem nenhum prejuízo a Deus, aos anjos e aos seus ministros, persistia a impressão em mim, como o Paraíso, o Inferno ou o Purgatório. Todos nós parecíamos parte de um jardim insubstituível enquanto mirássemos o sol, cujo brilho se acenderia ainda mais agudo sem que o percebêssemos, ou queimássemos nossos olhos, ainda que fôssemos ao final consumidos e transferidos para uma outra paisagem imóvel dominada pela claridade. Durante a passagem, com a ardência de nossos corpos, iluminaríamos – e alimentaríamos com nossas cinzas – a chegada do futuro tão diferente e igual a nós.
Santo, santo, santo, diz a liturgia. Ao redor, as imagens descem dos nichos, acenam para todos nós e caminham para o Ressuscitado. Santa Rita de Cássia parece advertir: – Não é estar entre irmãos o verdadeiro Paraíso? São Francisco de Assis emenda: – Noé não compreendeu que Deus aumentou sua família com todos os animais reunidos na arca. Ele começou um trabalho dado pelo Cristo e eu espero terminá-lo nessa comunhão extrema. Se o escritor russo Fiódor Dostoiévski escolheu Cristo em vez da verdade, medito, prefiro o congraçamento radical do pobre de Assis. Se não é o verdadeiro Céu em que Nossa Senhora habita, é a nesga de nuvem destinada aos meus olhos cegos.
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Fonte da imagem destacada: O Globo
Que imersão mística encontro aqui, Mariel.