A quem servem as cidades?
Aos animais é que não é. Nem ao ambiente natural disfarçado de paisagismo. Nada ao sol, nem às correntes de vento. Aos que passaram dos 60 anos é que não é. Nem aos sujeitos com locomoção restrita, nem às crianças. Muito menos aos pobres da classe dos miseráveis, esses que saem antes do dia começar e voltam depois do dia terminar com tão pouco na mão. Aos marginalizados? Óbvio que não. Se as cidades servem para conectar pessoas, elas mesmas tratam pessoas como se fossem entulhos. Servem a uma categoria muito específica do mundo: as cidades servem aos consumidores.
O primeiro versar é sobre o que pontua o caminhar do ser em uma cidade. De onde sai, para onde vai. Se sai de casa e se vai para o trabalho, para serviços ou para lazer. Cidades da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, ou bairros como Brasilândia, Freguesia do Ó e Tremenbé, na grande São Paulo, são os locais periféricos de onde saem pessoas para os centros de Rio e São Paulo. Se movimentam por trabalho, para as regiões centrais que valorizam prédios e espaços mais bem cuidados pelo poder público. Bancos, clínicas e restaurantes também são estabelecidos nesses locais.
São entidades valorizadas pelas cidades. Assim como os conglomerados de comércio, os shopping centers e os equipamentos de lazer como parques, cinemas, teatros e museus. A cidade afaga o consumo. A rua asfaltada serve ao motorista do carro mais caro. Por isso a Avenida Atlântica, em Copacabana, raramente abre uma cratera parecida com a da Rua Cecília, em Queimados, no estado do Rio de Janeiro. É assim em Salvador, em Porto Alegre, em Rio Branco. É assim também no Crato, em Ponta Porã, Araguaína ou Iringa, na Tanzânia.
O movimento de uma pessoa dentro de uma cidade parece tornar locais mais centrais e outros mais periféricos. Mas é nas periferias que se acomoda a maior parte das populações. É nos centros que se acomodam a maior parte dos confortos e da qualidade de vida. Um prédio vazio bem estruturado, com saneamento básico, fornecimento de água, energia elétrica, internet e arredores arborizado tem muito melhor qualidade de vida que um sobrado ou uma quitinete ou até uma casa com quintal no subúrbio onde se acotovelam os salários mínimos e cobranças máximas. Com fornecimento de água intermitente. Com coleta de lixo esporádica. Com presença do estado só em época de interesse democrático. A cidade valoriza o prédio abastado, não a pessoa que o faz existir o limpando, o vigiando, o vendendo.
Mesmo que pobres sejam consumidores, a cidade concentra a sua existência no consumo facilitado a quem não é pobre. Ou, no mínimo, a quem é classe média. Sempre sobre o viés do consumo. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, a sociedade de consumo “representa o tipo que promove, encoraja ou reforça a escolha de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas”. Por isso a opção não capitalista é apenas um privilégio de quem é capitalista por berço. Viver do que a natureza oferece é uma escolha mais óbvia de quem não nasceu lutando contra a fome. Quem tem miséria quer mais é poder comer bem, dormir em um colchão confortável e viver numa casa para qual a cidade oferece o bom ao redor e não a quilômetros de distância.
Não consumir também destrói a identidade do homem em um mundo cujo capital é o grande Deus regulador. Poder comprar é poder existir. Ter apenas dois reais na carteira e sequer ter a mistura em casa é já se ver no espelho quebrado como um animal de rua jogado ao destino. O mesmo Bauman também fala que “a busca de uma identidade para cada recorte da sociedade através da satisfação dos desejos – como o de consumir um objeto –, dado pela Globalização, faz com que se amplie a desterritorialização das relações sociais”. Não poder consumir é não poder desejar. Uma cidade é feita para quem consome, para quem deseja. Movimentar é parte da realização do desejo. Seja de vestir uma roupa nova, seja de pintar uma parede, seja de ver um filme, seja a ida ao supermercado para comprar caro o básico, seja de ver que dor é essa no dente.
Como é uma cidade média no Brasil? Avenidas centrais com calçadas pequenas, desniveladas, disputadas por pedestres, ambulantes, mesas de bares, moradores de rua e outros elementos. Avenidas mais amplas sem espaços para pedestres. Ruas menores para residências. Vielas para casebres. Separação por função. Zonas para fábricas, para prédios empresariais, para lazer, para casas. O dono de uma cidade é o poder. Ocupar um perímetro amplo e só depois tratar do alvará é coisa de rico. Ocupar uma área contra a lei sendo pobre é alvo de operação policial violenta. A cidade serve a quem pode, não a quem deveria. Nisso não fica evidenciada uma defesa irrestrita e dicotômica de pobre diante de ricos porque até essas definições exigem complexidade. Apenas é um retrato da ampla e desleal diferença que se dá numa cidade entre grupos de pessoas.
Mas há algo que mude o entendimento disso. A concentração de serviços, por exemplo, sofreu uma transformação significativa na última década. Determinadas redes de restaurantes, petshops e drogarias passaram a abrir filiais em locais menos centrais. Ah, não, isso também obedece ao consumo. As cidades servem aos consumidores. Não, não parece que algo vá mudar nisso. Nas cidades o sujeito tem duas opções: ou consome ou será consumido.
O problema não são as cidades. Em qualquer lugar, o problema é o dinheiro. O que move as pessoas num sistema capitalista. A pior praga que existe no mundo é o dinheiro. O que faz de nós, seres humanos, que deveríamos ser todos iguais na mesma raça, muito diferentes em classes sociais por determinação do quanto de dinheiro temos nas carteiras ou contas bancárias.