[Conto] Prenúncio de um assassinato
Ana Bolonha estará bastante empolgada na noite em que vai morrer. Ela terá acabado de se formar na Universidade Federal do Paraná e estará divagando, descuidada, sobre seu quase planejado futuro, e apesar de estar bastante irritada com Danilo Santiago, não se atormentará com mais um de seus aborrecimentos naquele dia. Ana levou muitos anos e inúmeras paixões para pensar ter desvendado os labirintos sentimentais, que algumas pessoas parecem já nascer sabendo trilhar, não tendo, como a maioria dos seres comuns, que se guiar rumo a saída (normalmente nunca parando de se embrenhar no sentido contrário) por incontáveis corações partidos.
Hoje, Ana, 18 anos, caloura no curso de Letras, no auge de sua imaturidade muito bem disfarçada de falsa inocência, é uma garota bonita: estará mais, todavia, ao se formar. O verde do filhote que acaba de sair do ninho se transformará em liberdade juvenil, mas de alguma maneira Ana nunca irá desgarrar do ar de ingenuidade dissimulada que lhe é tão característico e não poderia lhe conferir uma primeira impressão mais equivocada. Seus cabelos, que não nasceram loiros (mas somente os amigos de infância poderiam apontar isso), são longos e bem cuidados. Tem olhos grandes de jabuticaba e não é nem alta, nem baixa. Ana sempre teve muita preocupação com a balança: é magrela e nunca deixou de ostentar felicidades dos gordos perante todos, não lhe escapando sorvetes, brigadeiros e gulodices de espécie alguma ao tentar ganhar alguns quilos. Mesmo em suas piores fases, apesar dos cabelos mais desgrenhados, foi mestra em praticar as artes da sedução não intencional, essa que causa muitos inconvenientes.
No dia em que será assassinada, porém, Ana estará incomumente magra, talvez devido a pobre dieta universitária que haverá de se acostumar a duras penas, talvez pela ansiedade fugaz que irá a acometer nas vésperas do término do curso, a maldição da apresentação de TCC, do nervoso que Danilo a fará passar por amor: estará, entretanto, francamente aliviada ao fim do dia. Seus únicos desejos serão empreender sua viagem e descansar, mesmo que sua feliz porém mal remunerada formação não deixará com que encontre um emprego em sua área, isso não a preocupará em demasia: sua família não é de consideráveis posses e conexões, e não tinha ideia do curso que sua vida iria tomar, mas sabia que tudo acabaria dando certo. Duas semanas da noite que ela morrerá, embarcaria em um avião para Paris e passaria um ano sabático viajando pelo mundo com o dinheiro que juntou com muita labuta e preferiu gastar assim, não com um carro. França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Itália, Turquia, Índia, Tailândia, Japão, China, e finalmente, 3 meses em uma ilhazinha no Caribe, onde iria começar a escrever a genial novela que talvez a lançaria como um dos promissores nomes da nova literatura Brasileira (Isso, em seus sonhos. Ela, na verdade, iria trabalhar como bibliotecária da Câmara, profissão que viria a apreciar bastante e que lhe custaria vários anos de estudo para o concurso). Ana, porém, nunca poderá fazer isso, pois morrerá pouco conhecida porém muito amada. Sairá elá, aliviada, rumo a sua casa, onde planejará conversar com
Danilo com as melhores intenções e buscando agora por uma reconciliação definitiva, entretanto, no caminho de casa, encontrará uma colega, muito querida, que abandonará o curso de letras para buscar formação nos mistérios da mente humana, Maria Eloísa. Elô e alguns amigos estarão indo se embriagar em um dos muitos botecos baratos e felizes que florescem às margens das universidades, numa relação que não se faz clara – parasitismo ou mutualismo. Ana, animada naquele dia, e apesar de normalmente abstêmia, resolverá os acompanhar e partirá rumo ao boteco. Avisará Danilo, que não responderá, apesar que indicarão os símbolos de certo azuis ao lado da mensagem que ele a visualizou. Ana beberá bastante, enquanto contará para a amiga, que, acreditarão elas, daquele dia, ainda iria demorar dois anos para se formar em psicologia, mas na realidade nunca se formará, pois largará tudo para fazer malabares nas ruas com um argentino que conhecerá naquele mesmo bar (e que a fará muito feliz) , sobre os detalhes de seu TCC, sua viagem, e Danilo, e tudo mais que deixaram de se contar por tempos. Maria Eloísa, que escutava solícita, não deixará que Ana pare de beber, pois acredita que pessoas sóbrias são desnecessariamente infelizes e preocupadas com problemas que se resolvem sozinhos. Enquanto isso Danilo, sentado em seu cubículo, estará terminando com a papelada que seu Chefe terá deixado mais cedo em sua mesa, e remoerá sentimentos bastante contraditórios por Ana. Danilo, saberá ela, estará descontente com sua saída. Durante os dois anos que estarão juntos, ele se acostumará com a ideia do matrimônio. O fato é que Danilo não contará com um ano de separação em seus planos, e começará a por em dúvida a lealdade de Ana. Danilo haverá a traído com sua ex namorada no começo do relacionamento, mas a sujeira que este perpetuará não o impedirá de se sentir extremamente enciumado de Ana, não só naquele dia, mas em quase todos.
Danilo será muito contrário a ideia do ano sabático, nutrindo um ódio crescente pela liberdade não discutida que Ana estará proclamando. Quando ver a mensagem dela, avisando que estava indo para um boteco com amigos, tomará aquilo como uma ofensa pessoal, com um aperto no peito e com o ego ferido. Não responderá, terminará a papelada, ligará o carro e irá direto para o apartamento de Ana (pois ela lhe terá dado uma chave). Elô, no mesmo momento, terminará de encher (novamente) o copo de Ana, que já enrolava a língua e ria bastante, enquanto batia um papo de bêbado com Maria Eloísa e seus dois amigos (bastante interessados nela) – sexo, bebida, festas, TRUCO! Passará, assim três horas se divertindo, crime imperdoável para Danilo, que planejará sua vingança durante este tempo. No momento em que se dar conta do horário, Ana se assustará e irá para casa, avisando Danilo, que não responde novamente. Seu apartamento e aquele bar estarão separados por quatro quadras mal iluminadas e perigosas, mas Ana estará, pela época, acostumada a caminhar por lá. Sairá do bar embriagada, não realmente preocupada com quaisquer perigos que a rua poderia lhe oferecer, pois estará ainda, pensando nas próximas semanas, tudo que terá que ajustar e se desfazer em Curitiba. Seu desejo irá logo se transformar em seguir uma linha reta até o apartamento, pois começará a notar os transeuntes encapuzados e todos lhe parecerão suspeitos, e conforme caminhará apressada, perceberá as poças e alguns cães abandonados fuçando o lixo, começará a aguçar a audição e escutar os tintilares de garrafas, as buzinas, os carros, os passos que parecerão surgir de todos os lugares, buscando sempre pela pessoa que estaria a lhe seguir neste ambiente de guerra mal capitalizado, olhará quase psicótica para trás, escaneando as ruas iluminadas pelos postes amarelos-ocre-monotonia que as vezes apagavam e voltavam a ligar, assustadores. Fará silêncio a apenas uma quadra de sua casa, silêncio inatural ao centro, Ana só escutará os próprios passos apressadíssimos, quase correndo, finalmente dobra a esquina e pisa em uma poça ao se lançar para dentro da portaria de seu prédio, agora segura. Como todo morador das grandes cidades perigosas, Ana aprenderá a passar de um estado de extremo alerta para relaxamento aliviado. Enquanto subirá o elevador para o décimo terceiro andar, já pensará novamente naquelas coisas que lhe pareciam imediatas, e nem mesmo lembrará de Danilo quando abrir a porta do apartamento. Ele estará sentado em seu sofá, com a luz apagada, a televisão ligada em algum canal de notícias e olhando seu celular. Se fará surpresa, mas não muito. Já sabia o que esperar.
– Não acredito que você não voltou pra casa com algum homem que achou jogado na rua.
– Para, Danilo. Tava com a Elô e não tô com paciência pra isso.
– Para o que? Tu tá bêbada, né?
– Tô. Mas não importa. Eu posso ficar bêbada se quiser.
Danilo começará a se irritar e perder a linha, falando alto.
– Caralho, você deve achar que eu sou muito burro mesmo né? Acha que pode sair desse jeito, se mandar daqui, e rodar o mundo dando pra todo mundo durante um ano?
– Danilo, a gente já conversou sobre isso. Para que tá me deixando nervosa.
– Para de fugir, vagabunda. Não sei por que eu fiquei com você tanto tempo. Tá na hora de terminar.
Já estarão aos gritos.
– Acabou, caralho, Danilo, você não pode fazer isso comigo, para de ser injusto. Você sabe que eu te amo, porra.
– Ama nada, você é uma puta, Ana. Você é uma puta!
Ana, que não conseguirá pensar direito, sairá de seu próprio apartamento aos prantos, deixando Danilo sozinho. Descerá o elevador, tentando se recompor, e sairá do prédio pela portaria, onde será filmada pela câmera de segurança pela última vez. O relógio indicará 21:43. Danilo descerá alguns minutos depois, visivelmente apressado, e a ultima coisa que a câmera de segurança verá será ele saindo da garagem com seu Fiesta 2016, às 21:56.
Enquanto tudo morre e vive tudo ao mesmo tempo, os cães esfomeados, os insetos, os refugiados de guerras longínquas, os atores noticiados em telejornais, o mendigo e o banqueiro, morrem seres próximos e distantes, importantes e insignificantes (para nós), belos e desprezíveis; morrem. Esperamos, em idade tenra, que tudo morra, menos nós. A morte, porém, nem sempre tão obscura como parece, muitas vezes se esconde nos becos e ruas das grandes cidades; nos pastos, no campo, se esconde no mar, em casebres solitários e nas festas de casamento (e o que seria o matrimônio se não um voto, quase sempre quebrado, selado em vida mas, buscando pela morte conjugal?). Ainda assim, menosprezamos a certeza única que podemos ter – o fim. Na ânsia por o subjugar, nunca o encaramos como imediato. Ele nos segue, porém, silencioso e onipresente, assim como Ana o encontrará.
Ana será morta em uma travessa próxima ao terminal Guadalupe, com um tiro no peito. Ana, apenas mais uma vítima de um dos 93 latrocínios que acontecerão em Curitiba naquele ano, morrerá angustiada e insatisfeita. Soubera Danilo que a faria sentir assim nessa hora funesta, soubera Ana que pudera não o ter sentido, não o faria, não o sentiria. Enquanto uma vida jovem se encerrará, terá a outra que viver esmagada pelo peso da responsabilidade dessa morte precoce. Danilo viverá, porém, ciente que escolhe seu meio, mas não seu fim.