“Elas estavam MEIAS tristes” – por Sergio de Carvalho Pachá

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Para o Leandro e os demais amigos que amam e cultivam nossa língua materna

CONCORDÂNCIA POR ATRAÇÃO SINTÁTICA

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Perguntou-me hoje um jovem amigo se uma construção do tipo “Elas estavam MEIAS tristes” é, de fato, errônea, conforme leu, recentemente, numa gramática publicada no Brasil. Respondi-lhe que não só não é errônea, mas, muito pelo contrário, é excelente português, abonado pelos maiores clássicos de nossa língua, d’além e d’aquém-mar. E fiquei de enviar-lhe cópia da resposta que, sobre esta mesma questão, dei a um consulente que escrevera à Academia Brasileira de Letras, em cujo setor de lexicografia eu trabalhei entre 2002 e 2009.

Aqui está, pois, minha resposta, que, porventura, interessará também a outros dos amigos que me lêem aqui.

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(Imagem: Reprodução/Internet)

ELAS ESTAVAM MEIAS TRISTES

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Prezado Senhor,

Dos autores que lhe explicaram que, “modernamente já se tem aceito este tipo de concordância gramatical”, a saber, “Elas estavam MEIAS tristes”, não lhe direi que são meios ignaros, porque seria faltar à verdade: cada um deles é ignaro e meio.

Além de corretíssima e elegante, esta construção é muito antiga, e abonada pelos maiores clássicos da língua portuguesa.

Dela se serve, no século XVI, Luís de Camões, no sétimo verso da estância cinqüenta do canto terceiro d’OS LUSÌADAS:

“Uns caem MEIOS mortos, e outros vão
A ajuda convocando do Alcorão.”

O mesmo faz o quinhentista Frei Heitor Pinto, no capítulo primeiro do DIÁLOGO DAS CAUSAS:

“… a qual tinha esculpido de uma banda um barrete entre dois punhais, com umas letras em baixo MEIAS apagadas …”

O mesmo faz o seiscentista Dom Francisco Manuel de Melo, no capítulo quarto da CARTA DE GUIA DE CASADOS:
“O homem que casa com mulher de pouca idade leva a demanda MEIA vencida.”

O mesmo faz o oitocentista Alexandre Herculano, no capítulo nono de EURICO, O PRESBÍTERO:

“… e da boca MEIA aberta gotejava-lhe a espaços o sangue.”

O mesmo, enfim, faz o nosso Machado de Assis, cujo centenário de morte estamos celebrando. Eis, entre muitos outros, um exemplo do amplo uso que o genial escritor faz da construção de que nos ocupamos. Foi tomado à página 92 da edição crítica de Machado de Assis, empreendida pelo I.N.L. e a Editora Civilização Brasileira (Brasília/Rio de Janeiro, 1975):

“Lívia era a este respeito negligente e ‘MEIA douda’, como lhe chamava o irmão.”

Suponho, prezado senhor, que este punhado de abonações, coligidas nas páginas de alguns dos maiores cultores de nossa língua, já terá servido para patentear-lhe o dislate de quem tachou de “moderno” um vernaculíssimo e elegantíssimo giro sintático, ininterruptamente empregado na língua portuguesa, dos dias de Camões aos nossos dias.

Vamos agora à explicação da coisa: o que ocorre em construções do tipo “ela estava MEIA aborrecida” é o fenômeno que os linguistas chamam de ATRAÇÃO SINTÁTICA, e vem a ser, na definição de Joaquim Mattoso Câmara Jr., “uma variação flexional de gênero e número ou de tempo verbal, que infringe os padrões sintáticos normais — a) para maior harmonização morfológica dentro da frase, ou — b) para uma harmonização com outro padrão sintático significativamente equivalente.” (DICIONÁRIO DE LINGÜÍSTICA E GRAMÁTICA. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1981, s.u. “atração”). Neste caso de que nos ocupamos, temos que o advérbio MEIO, palavra por via de regra invariável, ao determinar um adjetivo em função predicativa (“aborrecida”, “mortos”, “apagadas”, “vencida”, etc.), pode assumir as marcas de gênero e número desse adjetivo. Daí o enunciado « Elas estavam MEIAS tristes », que tanta espécie lhe causou. Isto não é uma novidade, modernamente introduzida na língua que falamos. Muito pelo contrário : é português clássico, é português de lei.

Cordialmente,

Sergio de Carvalho Pachá
(Professor de Língua Portuguesa e Lexicógrafo-Chefe da A.B.L.)
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Ao que ficou dito acima, eu gostaria de acrescentar o seguinte: se é dislate qualificar de “construção MODERNA” o giro sintático que vimos estudando, qualificá-lo de “construção ERRÔNEA” é atestado de ignorância crassa, inadmissível num professor de língua portuguesa.

Texto extraído de uma publicação pessoal do professor em sua mídia social. 

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