Literatura e Cinema: Uma introdução à intermidialidade
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Umberto Eco, que, em vários textos, analisa o parentesco entre cinema e literatura, falando sobre a obra de Manzoni, em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção, escreve: “Não venham me dizer que um escritor do século XIX desconhecia técnicas cinematográficas: ao contrário, os diretores de cinema é que usam técnicas da literatura de ficção” (ECO, 1994, p. 77). Tal citação, ao mesmo tempo que menciona a ligação entre as duas artes, coloca a literatura como pioneira na utilização de recursos que serão, também, usados pelo cinema. É claro que isso se deve ao fato de a literatura ser muito mais antiga que o cinema, arte extremamente nova.
Há autores que são radicais ao defenderem a supremacia da literatura em relação ao cinema. É o caso de José Martínez Ruiz, que afirma, categoricamente: “El cine es literatura, si no es literatura, no es nada” (CARDOSO, 2016). Essa citação desconsidera filmes que não surgiram de obras literárias, ou seja, que não são adaptações. No entanto, pode-se compreender tão enfática afirmação, se for considerada a semelhança entre as estruturas das narrativas literária e fílmica.
Em contrapartida, há críticos que se opõem ao estabelecimento de uma relação tão estreita entre cinema e literatura. É o caso de Sylvio Back, para o qual a relação entre essas artes é “conflituosa”, porque “cinema é visibilidade; literatura é invisibilidade” (BACK, 2016). O cineasta vai mais além ainda, rejeitando a possibilidade de comparação entre livros e filmes e afirmando: “Quanto maior a traição, melhor o resultado” (BACK, 2016). Porém, se o intento é dedicar-se ao cinema, considerado por ele um tipo de arte totalmente avesso à literatura, por que usar o texto literário como base? É possível fazer roteiros bastante originais, sem o texto literário servir como matéria-prima, como bem exemplificam os filmes de Glauber Rocha, por exemplo, e tantos outros.
Verônica fala sobre a intermidialidade entre a Literatura e o Cinema. (Imagem: Reprodução/Internet) |
Para se ter idéia de quão antiga é a utilização que o cinema faz dos textos literários, basta atentar para o fato de que A gata borralheira virou filme, em 1868. Esse processo de transposição de uma arte à outra ganhou maior relevo em 1908, com a criação da Sociedade de Filmes de Arte, que, por sua vez, tinha como principal meta reagir aos modelos ou às fórmulas para se fazer filmes. A saída era, então, investir nas adaptações. Dessa forma, os filmes não seriam previsíveis, nem similares. Porém, o desafio da adaptação era, e ainda é, pensar em soluções para transpor o material literário para as telas, da melhor forma, pensando, inclusive, que o cinema dispõe de recursos que não são acessíveis à literatura e vice-versa.
Essa relação entre literatura e cinema intensifica-se dia após dia, o que pode ser comprovado não só pelas inúmeras adaptações de obras literárias para o cinema, mas também pela criação do Projeto PIC-TV — Programa de Integração Cinema e TV, que estreou com a adaptação da obra O auto da compadecida para a televisão, em um primeiro momento, em formato de minissérie, exibida na Rede Globo, e que, posteriormente, em 2000, foi transformada em filme. Oprojeto deu certo, pois a idéia de ver, no filme, um resumo do que a TV exibiu em formato de minissérie não afastou o público. Pelo contrário, no cinema, a obra repetiu o sucesso.
Linguagens e recursos das artes fílmica e literária
Talvez a definição mais aceita de adaptação seja a de “transcriação”, termo de Haroldo de Campos que prevê a transferência de um sistema de signos (literatura) a outro (cinema), mas não de forma extremamente fiel. A criação é permitida, mas de modo que a base da história literária não seja alterada. Portanto, desvios mínimos são permitidos, à medida que o roteirista, para fazer a adaptação do texto original, deve partir da seleção de cenas, o que, resulta em cortes, principalmente, e na condensação de vários personagens em apenas um. Ambos os processos são amplamente utilizados, já que, nas adaptações, o que dita as regras é o tempo, pela necessidade de contar uma obra de duzentas páginas ou mais em apenas duas horas, duração média dos filmes de longa metragem. Outros processos que aparecem nas adaptações são os acréscimos e a ampliação da participação de determinado personagem.
Para transpor para as telas um texto primeiro pensado literariamente, o cinema empresta recursos literários, o que é possível, pela presença dos elementos da narrativa também no filme. O filme, assim como o texto escrito, deve ter um enredo, que envolve personagens, que, por sua vez, movem-se em determinado ambiente, agindo de forma a inscrever os fatos em determinada ordem, cronológica ou não. Além disso, o papel do narrador no texto pode ser relacionado ao posicionamento da câmera, por exemplo, já que os recortes do que é mostrado na tela determinam se o espectador terá um ângulo amplo ou restrito de visão. Isso sem falar nos filmes que optam por uma narração explícita, como é o caso do filme Memórias póstumas, de André Klotzel. A câmera funciona para aproximar o espectador do personagem, por exemplo, quando a opção é pelo primeiro ou primeiríssimo plano. Isso equivale ao narrador detalhista e que enfatiza a emoção suscitada no leitor, pelas ações dos personagens. Da mesma forma, as câmeras baixa e alta podem indicar atitudes de enaltecimento e inferiorização, respectivamente, do narrador frente aos personagens. A cena também é uma unidade do universo literário, apesar de, hoje, seu conceito ser imediatamente relacionado ao aspecto visual e aos meios de comunicação que têm a visualidade como elemento principal, como o cinema e a televisão.
Marinyse Prates de Oliveira, em seu artigo Laços entre a tela e a página, faz referência ao surgimento do videocassete como um marco do entrelaçamento entre literatura e cinema, já que as possibilidades oferecidas por esse aparelho, de adiantar e retroceder o filme, equivalem às possibilidades que o livro oferece ao leitor, de avançar algumas páginas e, principalmente, de voltar a partes, para tentar compreender melhor determinada parte da história. Nas palavras da autora: “O surgimento do videocassete, não há dúvida, possibilitou um aprofundamento dessa relação que já era naturalmente estreita. Ao facultar ao espectador interferir no processo de projeção, retrocedendo, adiantando ou interrompendo-o, o vídeo conferiu ao espectador do filme as facilidades de manuseio próprias do leitor de livros” (OLIVEIRA, 2016).
E há que se mencionar a aproximação feita por Aguiar e Silva, que define também o filme como texto, definindo – como um “conjunto permanente de elementos ordenados, cujas copresença, interação e função são consideradas por um codificador e/ou por um decodificador como reguladas por um determinado sistema sígnico” (SILVA, 1988, p. 597-598). Não só a literatura sempre serviu, desde que o cinema foi inventado, como matéria- prima para os filmes, dos mais diferentes gêneros, como vários escritores da literatura universal foram contratados como roteiristas. Como exemplos, podem ser citados os nomes de Scott Fritzgerald, William Faulkner e Aldous Huxley, entre outros. Além desses, Marinyse Prates lembrou ainda os nomes de Gore Vidal, James Age e Nathanael West.
Marynise Prates, em seu artigo, cita Paulo Emílio de Salles Gomes, que vai além do parentesco entre literatura e cinema. Para ele, “o cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode prescindir desse apoio que eventualmente digere” (OLIVEIRA, 2016). De todas essas linguagens, o crítico menciona a literatura e o teatro como as artes que têm mais afinidade com o cinema.
Do texto literário ao filme
Para Jorge Furtado, a principal dificuldade do roteirista é concretizar sentimentos e sensações, pois, segundo ele, o roteiro de um filme deve ser visual, já que no cinema não ocorre como na literatura, que, através das palavras, leva o leitor a imaginar o que está sendo descrito. O filme já é o resultado de uma leitura. Por isso, deve transformar tudo o que na obra literária é abstrato em algo visível e concreto. Por esse motivo, a adaptação é extremamente subjetiva, o que pode ser facilmente percebido depois de um número de pessoas que foram assistir a uma adaptação qualquer comentarem: “Não gostei do filme” ou “Não foi o que eu esperava”. Dessa forma, a adaptação será mais bem aproveitada se o espectador já tiver lido a obra-base, para poder julgar a transposição do texto à tela, argumentando e, até, comparando sua visão, no momento da leitura, à visão apresentada no filme. Ítalo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, menciona: “No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro ‘vista’ mentalmente por um diretor, em seguida reconstruída em sua corporeidade num set para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme” (CALVINO, 1993, p. 99).
Quando trata das lacunas do texto literário, que, segundo Jorge Furtado e outros autores, já aparecem preenchidas, no filme, Umberto Eco diz que não pode ser esquecido o fato de o produto cinematográfico exigir também a colaboração do espectador:
Também no filme, às vezes mais do que no romance, existem os “vazios” das coisas não ditas (ou não mostradas) que o espectador tem de preencher se quiser dar sentido à história. Aliás, se um romance pode ter páginas à disposição para tracejar a psicologia de um personagem, o filme, não raro, tem de limitar-se a um gesto, a uma fugaz expressão do rosto, a uma fala de diálogo. Então “o espectador pensa”, ou melhor, diria, deveria pensar. Como diz Fumagalli, “as técnicas da esescrita dramatúrgica ensinam cada vez mais a trabalhar como se na tela só pudessem aparecer as pontas dos icebergs”, e freqüentemente “vemos um, mas — se prestarmos atenção — compreendemos dez”. (ECO, 2005, p. 98)
Jorge Furtado reforçou essa idéia, quando citou, em uma palestra intitulada Adaptação literária para cinema e televisão, em Passo Fundo (RS), na ocasião da 10ª Jornada Nacional de Literatura, uma lista imensa de recursos e técnicas que o cinema herdou da literatura:
De Homero o cinema aprendeu o flashback e a idéia de que cronologia é vício. De Petrônio, o poder dramático da prosódia e a subjetividade do discurso. De Dante, a vertigem dos acontecimentos, a rapidez para mudar de assunto. De Boccaccio, a idéia da fábula como entretenimento.
De Rabelais, os delírios visuais e a certeza de que a arte é tudo que a natureza não é. De Montaigne, o esforço para registrar a condição humana. De Shakespeare, Cervantes (e também de Giotto) a corporalidade do personagem e o poder da tragédia. Da comédia de Moliére o cinema aprende que a história é uma máquina. Voltaire ensinou a decupagem, a técnica do holofote e o humor como forma avançada da filosofia. De Goethe o cinema (e também a televisão) aprendem o prazer do sofrimento alheio. De Stendhal e Balzac vem o realismo, a narração off e o autor como personagem. De Flaubert, vem a imagem dramática e o roteiro como tentativa de literatura.
Brecht é o pai do cinema-teatro e da idéia de que realismo tem hora. (FURTADO, 2016)
REFERÊNCIAS
BACK, S. Cinema e literatura. Disponível em: <http://www.ufmg.br/online/arquivos/000574.shtml>. Acesso em: 23 jul. 2016.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CARDOSO, L. M. O. de B. Literatura e cinema: simbioses narratológicas. Disponível em: <http://www.ipv.pt/forumedia/5/17.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_____. A diferença entre livro e filme. Entre livros, ano 1, n. 7.
FURTADO, J. A adaptação literária para cinema e televisão. Disponível em:
<http://www.casacinepoa.com.br/port/conexoes/adaptac.htm>. Acesso em: 23 jul. 2016.
OLIVEIRA, M. P. de. Laços entre a tela e a página. Disponível em:
<http://www.joaogilbertonoll.com.br/estudos.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
SILVA, V. M. de A. e. Teoria da Literatura.Coimbra: Almedina, 1988.
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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: verô[email protected]