POESIA E CINEMA: NO PRÍNCIPIO ERA O VERSO…
MORTE E VIDA SEVERINA
O filme Morte e vida severina, lançado junto com Quincas Berro D’água, no ano de 1977, com direção de Walter Avancini, traz algumas novidades que o tornam estranho ao padrão Globo. A primeira inovação é a escolha de um texto poético para a adaptação, o que resultou em dificuldades e não produziu, com já era esperado, um resultado popular ou comercial, como a maioria das realizações dessa emissora, já que “popular” é palavra de ordem no meio televisivo, sobretudo nos canais abertos. A segunda inovação foi a ênfase ao real. Com isso colaboraram o elenco, formado por muitos autores não profissionais, e o cenário. Nessa produção, nada é cenográfico, o que faz com que, às vezes, as cenas do filme pareçam integrar um documentário, já que, no final da história, aparecem retratos da população que vive em mocambos. Além disso, nada parece excessivamente ensaiado, marcado ou coreografado.
A única coisa que parece artificial é a linguagem, com rimas, e que, por essa razão, não parece adaptar-se bem a uma história corriqueira, como a protagonizada por Severino, representado por José Dumont. No papel, o texto de João Cabral de Melo Neto é de uma beleza imensa, realmente fascinante. Porém, quando os atores e as atrizes declamam os versos, alguma coisa se quebra. Perde-se a magia das palavras. Em contrapartida, as repetições, que marcam bastante o texto de João Cabral, funcionam bem na tela, ajudando a imprimir um ritmo lento à trajetória de Severino.
O filme de Walter Avancini, acertadamente, abusa dos planos gerais, que favorecem o ambiente, o caráter bucólico, segundo Bernardet. No quesito fidelidade textual, o filme não decepciona em nada. Assistindo ao filme, é possível acompanhar o poema original, quase que verso a verso, pois pouquíssimos cortes foram feitos na adaptação. Morte e vida severina é mais um dos muitos filmes que investem na representação de um cenário típico do Norte ou do Nordeste. Isso foi, certamente, motivado pela ideia de aumentar o teor de realidade, a fim de desalienar o público, através da estética da aspereza. Tornou-se comum a contraposição da realidade simples e popular dessas regiões ao ambiente cosmopolita de metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo. Renato Ortiz pontua essa diferença da seguinte forma: “É sugestivo o contraste que se constrói entre São Paulo e o Nordeste. São Paulo é ‘locomotiva’, ‘cidade’, e o paulista é ‘burguês’, ‘industrial’, tem gosto pelo trabalho e pelas realizações técnicas e econômicas. O Nordeste é ‘terra’, ‘campo’, seus habitantes são telúricos e tradicionais e por isso representam o tipo brasileiro por excelência.” (ORTIZ, 1999, p. 36-7)
CARAMURU, A INVENÇÃO DO BRASIL
O filme Caramuru foi uma produção lançada em 2001 e seguiu as trilhas de O auto da compadecida. Guel Arraes e Jorge Furtado escreveram o roteiro para a minissérie, exibida pela Globo, e, depois, transformaram-na em longa-metragem. Além do nome, que remete o público leitor imediatamente ao poema épico de Santa Rita Durão, há, no filme, pouco da obra árcade e clássica da literatura brasileira. A chegada do náufrago Diogo Álvares em terras tupinambás desencadeia episódios como a relação que se estabelece entre Diogo e Paraguaçu e o disparo acidental de uma arma, o que rende a Diogo o título de “Caramuru” e muitas regalias pelo feito. Por esses serem episódios importantes, são transpostos para o filme, mas de uma forma diferente, já que o filme escolhe o caminho da comédia e isso pede uma roupagem diferente aos fatos aproveitados pelos roteiristas, na adaptação.
No entanto, a estrutura do poema épico sofre alterações bruscas para que o teor cômico seja mantido. O melhor exemplo disso é o final: em vez da tragicidade do poema, com a morte de Moema, tudo acaba em festa, com o retorno de Diogo e Paraguaçu para a tribo. Diferentemente do que acontece no livro, no filme Moema sai a nado atrás de Diogo e Paraguaçu, mas não os alcança e volta para a tribo, desiludida. Tempos depois, quando Diogo e Paraguaçu retornam, essa reencontra Moema, sua irmã, lhe dá presentes e um beijo na boca, ensinando à irmã um dos hábitos que aprendeu com os franceses. E, já que Diogo e sua esposa estão reintegrados à tribo, resolvem abrir mão da monogamia e decidem que Moema formará com eles um triângulo amoroso.
A chegada de Diogo a terras brasileiras, segundo documentos, pode ter ocorrido em 1509, 1510, ou antes. Os documentos não estabelecem uma data correta. Por isso, é inevitável não associar Caramuru, que é considerado o poema épico do descobrimento da Bahia, à obra Iracema, de José de Alencar, que, por sua vez, conta a lenda da formação do Ceará. Em vários aspectos, mas em um, especialmente, o filme Caramuru lembra a obra de José de Alencar: a figura extremamente idealizada e, portanto, estilizada, não real, do índio. Claro que o Romantismo, no caso de Alencar, endossava essa imagem perfeita de Iracema, na obra. No caso do filme de Guel Arraes, as razões que levaram a essa representação das índias Moema e Paraguaçu como modelos de beleza parecem ser estéticas e comerciais. As atrizes que representaram tais papéis, Débora Secco e Camila Pitanga, respectivamente, são tidas como símbolos sexuais e com o figurino favorecendo a beleza de ambas tem-se a certeza de uma boa recepção por parte do público.
Alongando a comparação entre Caramuru e Iracema, mas incluindo, agora, os textos literários e as adaptações desses para o cinema, observe-se o trecho transcrito a seguir, de Antônio Cândido, segundo o qual Diogo une duas culturas: “Paraguaçu é a metade americana de Diogo, como este é a sua metade européia, formando ambos uma mesma e complexa realidade.” (CANDIDO, 2000, p. 91). Exatamente o mesmo ocorre em Iracema. Martin e Iracema se complementam. Nesse ponto, as duas obras convergem, apresentando a miscigenação como principal traço, como raiz da formação da sociedade brasileira. Resquícios desse entrelaçamento cultural se fazem notar ainda hoje, em determinados costumes e até mesmo na arquitetura de algumas cidades.
No caso de Caramuru, que reconta a lenda de formação da Bahia, a comicidade, que acabou gerando inúmeros desvios em relação ao poema de Santa Rita Durão, não ofusca por completo o aspecto histórico na obra. A partir de estudos sobre a sociedade francesa da época, por exemplo, forma-se a parte inicial do texto de Arraes e Furtado. Aliás, a bibliografia, ao final do roteiro, é grande e bastante rica — um bom apanhado histórico sobre a formação do povo brasileiro, seus aspectos folclóricos e a cultura indígena. Parte do material consultado já é citado no prefácio, que estabelece um instigante jogo entre ficção e realidade. Logo no começo, aparece: “Esta história é uma ficção baseada em fatos reais, como toda história. E também em outras histórias, em partes reais e em partes inventadas. Como toda ficção.” (ARRAES; FURTADO, 2000, p. 7). No final do prefácio, após breves comentários e citações das fontes, há o seguinte trecho, referindo-se a Diogo: “Foi graças a ele que os portugueses fundaram Salvador, a primeira capital do Brasil. O Caramuru reinou entre os tupinambás por mais de 50 anos. O resto é mentira.” (ARRAES; FURTADO, 2000, p. 8). Mas a oposição entre ficção e história não para por aí. Em meio ao roteiro, aparecem trechos de livros de História, documentos, entre outros tipos de textos, que, no filme (não todos, mas boa parte deles) intercalam-se, como se alguém os lesse.
Enquanto é lido o fragmento, que surge, na tela, em primeiro plano, desenrolam-se cenas ao fundo. Isso pode ser exemplificado com a parte em que Isabelle, personagem de Débora Bloch, escreve uma carta, delatando Diogo. No momento em que as autoridades chegam para prendê-lo, Isabelle aproveita e rouba o mapa, pois ela e Vasco, representado por Luis Melo, têm interesse na rota lá traçada. Enquanto Diogo tenta livrar-se das autoridades, surge o texto da carta escrita por Isabelle, na voz dela mesma. Depois que Diogo é preso, surge novo intertexto. Agora, ganha espaço a sua confissão, o que provoca seu degredo. Outro recurso muito em moda, tanto na literatura como no cinema, a metalinguagem, também é utilizado no filme. Quando Diogo e Paraguaçu estão na caravela, voltando ao Brasil, ele dá à esposa um caderno, para que nele seja escrito um livro, com a história deles. Por isso, no final, intercalam-se nos diálogos trechos do livro que Paraguaçu está escrevendo e que resumem a história que os leitores estão lendo ou a que os espectadores estão assistindo. Essa alternância é cada vez mais acentuada à medida que o fim se aproxima. Aliás, o filme termina exatamente quando Paraguaçu, ajudada por Diogo, escreve, em seu livro, a palavra “fim”.