EROS E TÂNATOS: As contradições do amor e da morte no estoicismo de Ricardo Reis – Capítulo I
Este artigo foi escrito colaborativamente entre a colunista Fabi Barbosa, Daniela Martins, Isabela Biehl e Stefanie Cassilha.
Ricardo Reis faz parte da grande tríade de heterônimos do poeta que é considerado um dos maiores da literatura de língua portuguesa: Fernando Pessoa. Reis é bastante característico, singular diante dos demais heterônimos do poeta português e é possível ver em sua poesia a tradução de uma personalidade paradoxal. Utiliza-se esse termo porque, assim como será exposto, o poeta apresenta muitas dualidades e paradoxos em seus versos, assim, ele próprio entra em conflito a partir de conceitos opostos que colidem entre si dentro de sua poesia. Neste trabalho, serão apresentadas contradições acerca de temáticas do Amor (Eros[1]) e da Morte (Tânatos[2]) expressados em diversos poemas do heterônimo. A visão do poeta relativa a eles se contrapõe às afirmações características do estoicismo, ideal filosófico muito valorizado pelo heterônimo, e que se encontram presentes ao longo dos seus versos. Essa dualidade confere ao heterônimo forte carga psicológica e personalidade bastante distinta a seus poemas.
Conforme Fernando Pessoa afirma em carta a Adolfo Casais Monteiro, Ricardo Reis nasceu em 1887, no Porto, e foi educado em escola de jesuítas. Além disso, segundo o autor, Reis teve acesso a uma educação erudita, tornando-se médico. Viveu no Brasil desde 1919, tendo expatriado-se por ser monarquista, o que também é prova do tradicionalismo do poeta, não só na literatura, mas também na política (PESSOA, 1985, p. 199).
Reis é o heterônimo mais intelectualizado de Pessoa e apesar de escrever seus poemas durante o modernismo, traz para sua obra influências helênicas e latinas, buscando um estilo de vida e de poesia que se baseia no modelo de sociedade da Grécia Antiga. Nesse sentido, Paulo Neves da Silva (2011) caracteriza o heterônimo: “Ricardo Reis pode ser descrito como o poeta Horácio que escreve em Português. Propugna um neoclassicismo em que defende a objetividade pura das coisas” (SILVA, 2011, p. 9). Ainda comenta que Reis impregna na sua poesia uma disciplina em que essas coisas devem cair em um ideal de medida e regras clássicas.
Isso se traduz na valorização do paganismo e das escolas filosóficas vigentes em tal período, incorporando-os a sua criação poética. Assim, é possível encontrar em seus versos elementos da mitologia grega, como os deuses do Olimpo e seres míticos. Conjuntamente, Reis aborda também aspectos da modernidade, como a angústia gerada pelo constante medo da morte e do desconhecido.
Dentre as escolas filosóficas apresentadas na obra de Ricardo Reis, uma das mais significativas é o estoicismo. Essa escola nasceu em Atenas, aproximadamente no ano 300 a.C, criada pelo filósofo Zenão de Cítio, com o principal objetivo de alcançar a nobreza espiritual, advinda de uma escolha determinada de praticar exercícios moderados, conforme tal filósofo diz em carta ao rei Antígonos, publicada na compilação feita por Diôgenes Laêrtios (2008), biógrafo dos filósofos gregos:
Quem aspira à filosofia e detesta o muito louvado prazer, que torna efeminadas as almas de alguns jovens, tende naturalmente à nobreza espiritual não somente por natureza, mas também por uma escolha determinada. Uma natureza nobre, sustentada por exercícios moderados e depois por uma instrução intransigente, chega com facilidade à posse da excelência perfeita (LAERTIOS, 2008, p.183).
A ideologia estoica tem como seu pilar de sustentação o viver de forma moderada e sem exageros. Para atingir esse propósito o homem precisa vivenciar uma constante batalha, traduzida por métodos de abdicar paixões (pathos[3]) como as emoções e vícios humanos. Isso significa viver a vida no seu momento presente, sem comoções que possam distorcer a tranquilidade e a serenidade do homem. Sob essa perspectiva as qualidades racionais são exaltadas, como por exemplo o conhecimento e o intelecto.
Sêneca (2006) reafirma a visão apresentada pelos estoicos. Para o filósofo, os homens que se submetem aos vícios humanos, todos contrários às virtudes pretendidas por essa escola, temerão suas próprias lembranças, pois não foram dignas de uma vida permeada com sabedoria. Ele ainda diz que esses vícios nunca deixarão de existir: “Vossa vida, ainda que se estenda por mais de mil anos, estará confinada em um período muito estreito: já os vícios não deixarão de devorar época alguma” (SÊNECA, 2006, p. 5). Essa visão instrui que o verdadeiro sábio compreende que as emoções externas, comoções inerentes ao homem, influenciam seu pensamento lógico, comprometendo a sua capacidade de exercer a racionalidade.
Assim, o estoicismo se afirma na doutrina da apatia, que busca a ausência de toda e qualquer paixão, conforme afirmam Giovanni Reale e Dario Antiseri:
As paixões, das quais depende a infelicidade do homem, são, para os Estoicos, erros da razão ou, de qualquer modo, consequências deles. Enquanto tais, ou seja, enquanto erros do logos, é claro que não tem sentido, para os Estoicos, “moderar” ou “circunscrever” as paixões: como já dizia Zenão, elas devem ser destruídas, extirpadas e erradicadas totalmente. Cuidando do seu logos e fazendo-o ser o mais possível reto, o sábio não deixará sequer nascerem as paixões em seu coração, ou as aniquilará ao nascerem (REALE, ANTISERI,
2003, p. 292).
Na poesia de Reis, percebe-se o mesmo pensamento de disciplina contra essa pathos que distorce a virtude:
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
[…] Colhe as flores mas larga-as, Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio (REIS, 2015, p. 141).
Alguns de seus poemas expressam a fuga do eu-lírico, tanto da dor quanto do prazer, com o entendimento de que a falta desses sentimentos constitui um homem melhor, refletindo uma visão embasada na filosofia estoica.
[…] Buscando o mínimo de dor ou gozo Bebendo a goles os instantes frescos Translúcidos como água
Em taças detalhadas […] (REIS, 2015, p. 32).
É preciso compreender, porém, que o poeta lida com paradoxos, entre eles a própria fundação da sua poesia na filosofia estoica. Essa discrepância de Reis enquanto poeta estoico sustenta-se em dualidades, como por exemplo a do Amor (Eros) representado por ele.
Se no estoicismo nenhum forte sentimento deve sobressair à razão, claramente um estoico se depara com uma grande problemática no momento em que Eros apresenta-se a ele. Isso se dá pois tal sentimento faz com que Reis valorize momentos em que é capaz de sentir as emoções que lhe são proporcionadas, visto que elas terão fim, como nos seguintes versos:
[…] Convivas lúcidos da sua calma, Herdeiros um momento do seu jeito De viver tôda a vida
Dentro dum só momento,
Dum só momento, Lídia, em que afastamos Das terrenas angústias recebemos Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas […] (REIS, 2015, p. 245).
Pode-se perceber como o eu-lírico se preocupa com a finitude de seus sentimentos, sugerindo que ele e a musa devem aproveitar os instantes alegres que Eros proporciona. Assim, Reis se contrapõe ao estoicismo, pois aparenta não aceitar de maneira genuína o que o destino reserva, posto que além de nutrir a emoção, tenta ao máximo preservar o prazer das sensações vivenciadas no momento.
É possível observar o mesmo desassossego do eu-lírico presente na temática da Morte, uma vez que o destino está profundamente relacionado a Tânatos. A concepção de destino para Reis, o Fado, é aquela na qual as Parcas[4], seres divinos, controlam o futuro dos homens mortais e dos deuses imortais. Conforme coloca Jean Brun (1986) o destino, para essa escola filosófica, se insere de acordo com as forças éticas, teológicas e lógicas que se inscrevem na ordem do mundo (BRUN, 1986, p. 56). Ou seja, o Fado é descrito para os estoicos como a organização natural do universo. Portanto, de acordo com esse ponto de vista, é preciso respeitar essa ordem, considerando que é uma verdade indiscutível e inalterável. Essa aceitação o levará à felicidade advinda do conhecimento, conforme afirma Zenão, citado por Diógenes: “Trazes-me felicidade, Destino, conduzindo-me à filosofia” (LAÊRTIOS, 2008, p.182).
Entretanto, o eu-lírico criado por Reis luta contra si próprio pois aparenta ter medo de seguir o destino cegamente. Isso demonstra que Reis tem dificuldade, principalmente em aceitar a última verdade absoluta, consequência oriunda do destino dos homens mortais: Tânatos. Por vezes o eu-lírico diz temer o destino e por outras diz temer a morte.
[…] Lídia, a vida mais vil antes que a morte, Que desconheço, quero; e as flores colho Que te entrego, votivas
De um pequeno destino (REIS, 2015, p. 85).
Tendo isso em vista, este trabalho tem como objetivo geral verificar o estoicismo presente na obra de Ricardo Reis e como essa filosofia pode se apresentar de forma contraditória com relação às ideias de Amor e Morte nas quais ele se baseia para grande parte da criação de seus versos.
A fim de alcançar o objetivo proposto, alguns objetivos específicos são necessários, sendo eles: considerar como o estoicismo percebe os conceitos de emoções e sentimentos; estudar a existência dos conceitos de Amor e Morte nos poemas de Reis e como são expressos; analisar tais conceitos sob a perspectiva do Destino e estabelecer o porquê de considerar-se Reis contraditório ao trabalhar os temas Amor e Morte relacionados ao estoicismo.
Para alcançar os objetivos deste trabalho, expõe-se primeiro a visão do
poeta a
respeito do tema
Amor (Eros). Na sequência,
aborda-se a Morte (Tânatos)
por meio da análise da obra poética de Reis. Finalmente, confere-se como tais
escritos revelam as
principais intenções de
Reis ao escrever
toda sua obra poética.
1 EROS, em grego ”Erwς (Éros) significa desejo incoercível dos sentidos. Personificado, é o deus do amor (BRANDÃO, 1997 p. 186).
2 TÂNATOS, em grego Θάνατος (Thánatos), tem como raiz o indo-europeu dhuen, “dissipar-se, extinguir-se”. O sentido de “morrer”, ao que parece, é uma inovação do grego. O morrer, no caso, significa ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Grécia o morto tornava-se eídolon, um como que retrato em sombras, um “corpo insubstancial” (BRANDÃO, 1997 p. 225).
3 Trata-se de uma das dez categorias aristotélicas, apontada por Descartes, Condillac e Hegel: a paixão humana. A paixão amorosa inclui-se como sendo algo que passa a controlar o sujeito em direção a um destino inexorável. Toda e qualquer exacerbação que conduza o sujeito a uma radicalização de uma forma de existência pode levar a um destino fatal (MARTINS,1999, p.70).
4 Como no mito grego, eram três: chamavam-se Nona, Decima e Morta. A primeira presidia ao nascimento; a segunda, ao casamento; e a terceira, à morte (BRANDÃO, 1997, p 232).
Que profundo! de onde procedem essas moças? existem de fato, @cassio?
Haha. Sim, dileto amigo. São recém-formadas em Letras e foram minhas colegas de estrada na Academia. Fabi escreve para o Recorte também, eu queria todas elas, mas…