A Lama do Nordeste: análise comparativa.

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A pobreza já é tema largamente trabalhado na literatura brasileira, sendo não somente usada para contestar a situação real dos brasileiros mas para apontar isso como um problema social. Hoje irei tratar justamente sobre esse assunto, utilizando dois autores que não por acaso são nordestinos e escrevem sobre a miséria do Nordeste.

O primeiro, que tem a pobreza como um dos principais temas de sua obra, é João Cabral de Melo Neto, com sua maior produção: “Morte e Vida Severina”. O segundo é um dos meus escritores favoritos de todos os tempos: Jorge Amado, com sua obra “São Jorge dos Ilhéus”. Mas por que logo essas duas obras especificamente?
Nessas duas obras há uma semelhança no modo como se retrata a pobreza: a lama. A lama parece ser o objeto que representa não só a pobreza, mas a miséria, o sofrimento, o desamparo. Quando se trata dessas duas obras a lama não é só terra, é uma representação da morte.

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Em “Morte e Vida Severina”, temos o viajante Severino que, chegado à Recife, fugido da seca, fica desiludido ao descobrir que na cidade grande não havia a esperança que ele imaginava. Observe os seguintes trechos:

 

“que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida
(…)
bem mais sadia que os mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama”

 

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A Lama do Nordeste: análise comparativa.

Com a leitura desses trecho e mesmo da obra completa, é possível entender como a lama recebe uma conotação negativa, quase como se falasse de algo que destrói o corpo humano e sua vida. Nesses trechos a lama está sempre atribuída à morte, a um caixão ou então à sujeira ou uma doença. “é graxa de sua máquina/coisa mais limpa que a lama”, é importante perceber como a lama é tratada como uma moléstia, os mangues são ditos assassinos e ambientes inóspitos que mesmo assim são habitados pelos miseráveis que não tem para mais onde ir.

Dessa mesma forma, Jorge Amado atribui à lama essa ideia negativa, relacionada não só à morte, mais a uma prisão para aqueles que não conseguem deixá-la. Viremos nossos olhares para Ilhéus, mais especificamente para a Ilha das Cobras, região mais pobre da capital do cacau:

“Alguém, num discurso, certa vez chamou a Ilha das Cobras de bairro vermelho e não queria se referir à cor de barro das casas e do chão, mas sim aos sentimentos dos seus habitantes. (…) Essas tradições cercavam a Ilha das Cobras de certo mistério vivo e excitante. Mas a sua tradição mais real, que se conservava através dos tempos, era a da lama das ruas. (…) Estes [meninos] da Ilha das Cobras eram também amarelos mas de um amarelo diferente, mais verdoso, não tinham barriga, o sexo era sempre pequeno. A pele sobre os ossos, escaveirados, sabidos de fazer medo. O seu grande ponto de contato com os meninos das fazendas, filhos de trabalhadores, era a facilidade com que morriam. Enquanto eram pequenininhos chafurdavam na lama da Ilha das Cobras”.

Fica explícito no trecho exibido o nível de miséria em que viviam os habitantes da Ilha das Cobras. É mister salientar que a lama parece sempre acoplar mais negatividade à esse cenário, quase como sendo a razão das mortes precoces dos meninos, eles não mergulham na lama, é a lama que os absorve.

Torna-se claro que a lama tem algum fator metafórico com sua presença na obra, o que se atesta com a leitura da primeira parte do trecho acima, onde o “bairro vermelho” não se refere literalmente à lama, mas aos sentimentos daqueles que vivem sobre ela. Há ainda um fator de desculturalização, porque se fala de um grupo de pessoas pobre demais para ter alguma cultura que não seja a lama e a morte. A lama é a “tradição mais real” da Ilha das Cobras, quando pensa-se nesse lugar, o pensamento voa diretamente para os termos “lama” e “morte”, sempre unidos, é claro.

Trazendo para o mesmo âmbito as duas obras em questão, é possível constatar que elas criam a mesma imagem figurativa da lama, digo figurativa porque não é apenas a questão se se retratar que existe nessas regiões a lama espessa e suja, mas porque ela é um símbolo da morte. A lama é usada não só como cenário, mas como uma metáfora para representar a miséria, a fome, a desilusão. Seria mesmo melhor trabalhar com a graxa das fábricas do que viver nessa lama, pois ela é como uma moléstia da qual os habitantes dos mangues de Recife e da Ilha das cobras não conseguem se livrar.

Ao longo da literatura brasileira regional já foram criadas diversas metáforas para a morte e a miséria do Nordeste. Os mais variados fatores geográficos e políticos já foram utilizados para retratar esse cenário. A lama é só mais uma forma de esses dois autores, especificamente, trazerem para os brasileiros a situação triste, porém real, da pobreza no Nordeste. É, no entanto, digno de nota que nesses dois casos não é da seca que se trata (na Obra de Cabral trata-se também da seca, mas não somente dela), mas da miséria nas cidades do litoral. Trata-se da Lama do Nordeste.

 

 

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