Der Wanderer über dem Nebelmeer, O Viajante sobre um mar de névoa, de Casper David Friedrich

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O quadro com o título Der Wanderer über dem Nebelmeer (Viajante sobre um mar de névoa) é não apenas o quadro mais famoso de Casper David Friedrich, mas é mesmo uma daquelas obras que se tornaram por metonímia um ícone, uma imagem com um peso simbólico e que sintetiza-incorpora diversas ideias e épocas: representa a pintura alemã, representa o Romantismo e representa a obra toda do próprio pintor, tornando-se assim um “Leitsymbol” de toda uma época. De forma simplificada, o quadro abarca as três grandes temáticas do pintor: contemplação (cena bucólica e idílica); devoção e aventura arriscada.

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Se é verdade que nenhum romance vale pela narrativa, a pintura também não vale pelo que é representado. A grande pintura vale pelo representado, pelo não pintado, pelo simbolizado, pelo ambiente que ela (re)cria e por tudo o que dela exala.

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Num primeiro olhar vemos “materialmente” um homem jovem com uma sobrecasaca verde-escura, segurando algum tipo de bengala na mão direita frente a um precipício rochoso e de costas para o espetador. O homem olha de forma pousada para o ambiente da paisagem onde se avista uma maré espessa de nevoeiro. Ao longe vê-se algumas montanhas e num ponto do horizonte tudo se confunde como se não existisse, de fato, uma linha final visual.

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Todos os elementos topográficos são rearranjos das Elbsandsteingebirge que ficam nos limites da Saxónia e da Boémia, uma parte de Zirkelstein e, talvez, Kaltenberg, entre outros.

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De alguma forma, Caspar consegue o prodígio de pintar o vazio. Dividindo a profundidade em planos, percebe-se que há uma supressão dos planos do meio: há um plano próximo que rodeia o contemplador e um outro, ao fundo, num efeito telescópico, dando a sensação de vertigem (Abgründigkeit) e de vazio, e dando a entender que o olhar o viajante varre a paisagem abarcando o precipício. Note-se que, em frente, não há qualquer elemento humano, o homem está assim face ao seu futuro, ao seu vazio e à sua solidão – está naquele ponto, como na vida, em que, no fim, estamos sempre sozinhos.

A sensação de solidão é, assim, dada por este jogo, de alguma forma, inovador da supressão de planos. O viajante tem uma vida “real”, mas, neste ponto, está diante do que o espera: o irreal.

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O viajante está vestido de uma forma totalmente inapropriada para caminhadas nas montanhas escarpadas, a sobrecasaca tem aqui um valor simbólico-formal: veste-se um homem de forma formal no momento da sua morte. A peça de vestuário inapropriada dá um tom formal, fatídico, sério a toda a cena, ela introduz o ambiente filosófico e dá um tom de morte e fatalidade ao cenário que se derrama diante do olhar. Na arte alemã do século XIX, o Viajante é a figura que liga lugares, liga discursos, liga sensações interiores, memórias e, com isso, atinge cumes.

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O espetador vê tudo, mas não vê o que o viajante vê, permitindo a cada um projetar-se na paisagem, no tempo, no infinito: vemos com o viajante, vemos como o viajante e cada um vê-se a si mesmo na idealização do olhar do viajante. Poderíamos classificar a pintura como retrato, uma vez que há uma figura central pictórica, apesar do retratado estar de costas, ou como um não-retrato, uma vez que se instaura uma certa desumanização do retrato e do retratado – obviamente, estamos na presença da Rückenfigur (figura vista por trás) por excelência. Na ausência de elementos humanos e humanamente organizados, a paisagem, muito no gosto romântico, torna-se, por sua vez, um não-lugar, um deserto humano, um caos, uma parte da transcendência cósmica e mística. A paisagem, na sua brutalidade, na explosão de forças naturais conduz o solitário à contemplação do que em si há de irracional e já despido da ganga humana: o viajante está civilizadamente vestido para ver a incivilização, a ausência de ordem e razão. É curioso que o quadro ilustre tantas vezes o pensamento racionalista e organizado, por exemplo, de Immanuel Kant quando, na verdade, numa segunda leitura, tudo nele é um hino ao inconsciente, à natureza em estado bruto e à irracionalidade.

Este duplo espetáculo contemplativo, permite, quase por paradoxo, que o espetador veja não mais do que uma janela da sua paisagem interior, note-se a respiração profundamente introspetiva, quase fazendo alusão à dificuldade em respirar das altas montanhas. Não há um diálogo com a natureza, mas sim um diálogo com o nosso Eu-Absoluto, a nossa subida íngreme espiritual e a forma como a arte em algum ponto nos eleva da vida – num mundo plano, chato e monótono, o homem sai à procura de picos de emoção e de experiências limite. Surpreendentemente percebemos que o quadro está centrado não no viajante, mas no espetador, não se trata de pintura, mas sim de poesia e nem há uma paisagem, há apenas uma imagem simbólica difusa da nossa interioridade. O viajante está no centro do quadro, como o nosso eu também está no centro da nossa vida e tudo se mistura, num amálgama difuso da tranquilidade da natureza e do pesadelo da tempestade.

Contemplação do inatingível…

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Toda a arte visa alguma forma de transcendência, a arte é sempre uma ponte entre os elementos do plano da realidade (ou não) e os da irrealidade, a arte é sempre, num certo sentido, “espiritual”, como dizia Casper David Friedrich “Das Göttliche ist überall” (O Divino está em todo o lado): o viajante está na linha que separa a sua subjetividade, o seu eu e o universo transcendente onírico – note-se que as brumas reproduzem o ambiente brumoso e imaterial dos sonhos.

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Esta sensação de “espiritualidade” é ainda transmitida por todo um jogo sofisticado de criação em profundidade. Dando umas rápidas pinceladas na composição, vemos uma estrutura totalmente vertical simbolizando a ascensão espiritual, a Transfiguração de Cristo também se dá numa montanha. Os volumes sucessivos vão diminuindo progressivamente em função da distância. No grande plano da paisagem, há uma subdivisão em sucessivos planos com os montes escuros alternando com as nuvens claras – uma valsa sublime entre a geometria e a cor!

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Espalhado na leveza de algodão e na doçura dos brancos, vemos espelhado o ambiente e composição das estampas chinesas. Por outro lado, numa perspetiva mais clássica, é evidente o “sfumato” muito utilizado, por exemplo, por Da Vinci: clara mistura de azuis e brancos leves nas formas mais ao fundo, dando aquele ar renascentista de “atmosfera” e concomitantemente perda de figuração na última linha, por forma a promover a mistura e confusão da linha da terra e do céu – transmitindo a tão desejada “sensação de leveza” (Leichtigkeit).

Friedrich centra o quadro num falso ponto de fuga: centra-o no viajante e faz disparar diagonais em todas as direções, note-se o “vê” superior das montanhas ao fundo e o “vê” inferior das diagonais das rochas laterais, criando um ritmo oscilatório ascendente e descendente no olhar. O Viajante torna-se o centro geométrico de uma cruz e a sua postura nobre de domínio e coragem perante o destino, já que o homem é feito à imagem de Deus (Gottebenbildichkeit), condu-lo a esta “experiência de cume” (Gipfelerlebnis).

O homem é, assim, um viajante no mundo e o centro total da filosofia e cosmovisão românticas.

Scripsi 5

Bibliografia breve:
Peter Rautmann, Caspar David Friedrich. Landschaft als Sinnbild entfalteter bürgerlicher Wirklichkeitsaneignung, Frankfurt am Main 1979
Tina Grutter, Melancholie und Abgrund. Die Bedeutung des Gesteins bei Caspar David Friedrich. Ein Beitrag zum Symboldenken der Fruhromantik, Berlin 1986
Helmuth Borsch-Supan, Caspar David Friedrich, Munchen 1973

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