Julian Barnes e a recriação do mundo
A História do mundo em 10 ½ Capítulos (History of the world in 10 ½ Chapters) de Julian Barnes é um exercício literário de fragmentação do narrador: há uma mistura heterogénea de realidade e ficção, de estilos de escrita, de perspetiva, de temáticas. Uma leitura atenta e simultânea dos contos faz aparecer em cada um diversos leitmotivs e ressonâncias dos outros, num jogo malabarístico de quase fuga musical, sublinhando a escrita marcadamente polifónica de Julian Barnes.
O livro é uma alusão cómica à famosa História do mundo (History of the world) escrito por Sir Walter Raleigh, muito conhecido também por ter sido quem introduziu a utilização do tabaco em Inglaterra.
Se a restante obra de Barnes é mais conservadora nos meios narrativos utilizados, a História do Mundo e O papagaio de Flaubert são duas obras de cariz pós-moderno.
A gigantesca maioria de críticos literários e estudiosos da obra de Barnes considera O papagaio de Flaubert o seu melhor livro, perspetiva que não só não partilho, como me é totalmente incompreensível, pessoalmente acho O papagaio de Flaubert o pior livro de Barnes que, por algum motivo misterioso, foi totalmente sobreavaliado pelo mundo literário. Neste pequeno ensaio concentro-me em expor este livro de contos que tem, para mim, grande valor literário e pessoal.
As críticas habituais ao livro são de fácil levantamento: que não há coerência na narrativa, tanto que nem há um fio narrativo claro e que não passa de um pacote de histórias amalgamadas para edição depois de publicação fragmentada no New Yorker, Barnes teria caído na tentação da facilidade ao, simplesmente, juntar o pacote e dar-lhe um cunho de “romance”. Curiosamente, os mesmos críticos perdoam tudo ao Papagaio de Flaubert só porque as prateleiras da escrita estão mais coladas e harmonizadas – penso que muitas mentes vão levar alguns séculos a sair do século XIX literário.
O primeiro capítulo narra uma história alternativa à Arca de Noé. Na Bíblia Noé é apresentado como alguém com problemas com a bebida e que, uma vez embriagado, gostava de se despir e andar pela casa nu – tema que o autor, típico inglês, vai explorar à saciedade: bebida e humor nunca faltarão em Inglaterra. O narrador reconta a história do ponto de vista do bicho da madeira que entra na arca de forma clandestina.
A escolha do bicho da madeira parece ser apenas uma caricatura da arca de Noé, mas não é, há um valor simbólico forte por trás da escolha. O livro é de 1989 e ainda se vivia sob a égide do acidente de Chernobil. Na sequência do acidente pairava no ar a possibilidade da destruição da humanidade e colocava-se a pergunta que espécies animais sobreviveriam a um acidente nuclear a outra escala, nesse momento a humanidade percebeu que corria o risco de entrar em extinção e que quem sobreviveria seriam, entre outros, as pulgas, o bicho da madeira, as lagartixas e as eternas e multirresistentes baratas.
O segundo capítulo, Visitors, descreve o assalto e sequestro de um grupo terrorista a um navio enquanto decorria uma palestra de história. A situação presta-se a diálogos mirabolantes entre a mentalidade e leitura histórica dos terroristas e o historiador. A situação é em tudo uma alusão ao famigerado sequestro do navio cruzeiro Achile Lauro perpetrado pelo Grupo de Libertação da Palestina em 1985.
O terceiro capítulo descreve o julgamento do caruncho responsável por prejudicar a estabilidade de uma igreja.
O quarto capítulo é a descrição de um mundo fictício em que Chernobil é o primeiro grande acidente nuclear às portas de uma guerra e na iminência de um holocausto nuclear.
O quinto capítulo é uma análise mais ou menos fictícia do quadro de Géricault “O rapto de Medusa”.
No sexto capítulo, ainda sob a temática do quadro de Géricault, acompanhamos uma religiosa que vai em direção a um Mosteiro para interceder pelo pai falecido.
O capítulo sétimo, intitulado Três histórias simples (Three simples stories), retrata a vida de um sobrevivente do Titanic cruzado com a história de Jonas e da baleia e com uma história já esquecida de um navio alemão com o nome MotorSchiff Saint Louis com 900 judeus a bordo fugindo da Alemanha nazi rumo a Cuba. Foi-lhes negado o desembarque em Cuba e após sucessivas tentativas de desembarque nos USA, Canadá, Egito, etc., acabaram por regressar à Europa onde também não foram aceites nem pela França, nem pela Holanda, nem Inglaterra entre outros, acabaram, assim, na sua maioria, mortos nos campos de concentração.
O capítulo oitavo é uma coleção de cartas de um ator que viajou para uma “selva longínqua” para filmar um filme dentro da temática de A Missão. As cartas começam por ser simples descrições e vão se tornando mais densas com reflexões sobre o realizador, as pessoas os indígenas, etc.
Finalmente chega o “meio capítulo” colocado entre o oitavo e o nono, trata-se de uma espécie de discurso do autor com o nome Julian Barnes acerca do amor. As opiniões deste narrador com o mesmo nome do autor não vinculam o escritor.
Há uma mistura de alusões ao quadro de El Greco Burial the count of Orgaz e alusões a poemas de Larkin e de Auden “Devemos amar-nos uns aos outros ou morrer” (We must love one another or die).
O capítulo nono Projeto Ararat conta a história de um astronauta, em tudo semelhante a James Irwin, o oitavo homem a pisar a lua, e da sua expedição ao monte Ararat para recuperar a Arca de Noé.
Nestes capítulos finais é absolutamente notório o regresso dos temas de abertura.
No último capítulo Julian Barnes afirma que imaginou o que seria ser ele o último homem.
O homem forja a sua identidade pela forma como conta a sua história, a nossa história é sempre narrativa, mas Barnes tem um ceticismo visceral em relação à história como “ciência social” e é por isso que, tendo uma personalidade tão contida, entra neste voo livre humorístico e não segue qualquer ordem cronológica, limita-se a fazer alusões, justaposições, a estabelecer paralelismos e conexões com utilização em profusão de diversas vozes narrativas. O autor é um homem moderno e, portanto, vive num mundo estilhaçado e sem sentido, mas o livro convida o leitor a uma visão ordenada: alguma ordem que o livro ganhe é dada pela participação ativa do leitor, é o leitor que transforma os contos num Romance. Barnes, ao contrário dos medíocres, não tem qualquer desejo de chegar a qualquer conclusão que seja utilizável na prática.
LEIA TAMBÉM: O Romance dos Três Reinos