Kafka e os animais
Franz Kafka, em particular, não escreve em alemão, pelo menos, não escreve no alemão com que se pede salsichas e cervejas e, em geral, todo o escritor escreve no limite da linguagem, escreve como um trapezista sobre o abismo.
Revisito neste escrito breve a obra geral de Kafka tomando a boleia prismática de Deleuze, segundo o qual escrever é esticar a linguagem até ao limite da dor.
Gregor Samsa, e nós todos, vive como um homem e morre como um animal, os homens não sabem morrer, só o animal o sabe e o escritor é o que vai assintoticamente esticar-se até ao grito primário, até ao estertor, até ao canto dos pássaros, até ao arfar orgásmico e é por isso que só devemos ler livros “que nos firam ou nos apunhalem. Se o livro que estivermos a ler não nos acordar como um golpe na cabeça, para que o lemos? Seria para nos fazer felizes enquanto o escrevemos? Meu Deus!! Se fôssemos felizes não tínhamos livros e se fosse para ser feliz nós mesmos escreveríamos os livros se fosse necessário. Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos lamentem profundamente como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ter sido banido para as florestas, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós. É nisto que acredito”
A relação imagética entre a literatura e a animalidade não se inicia, nem termina, com Kafka, este não é mais que um autor exímio na utilização deste instrumento literário e, com variações, cinematográfico.
O homem pode erguer muitas diferenças entre si e o animal, pode pretender ser dotado de uma putativa racionalidade que lhe outorgaria uma superioridade, mas a grande verdade é que morre sempre como um cão ou como um cavalo.
Os animais emergem na literatura sobretudo na forma de conto e, em particular, de conto infantil: mergulhamos as crianças no mundo dos animais, do “Rei Leão”, até lhes oferecemos cachorrinhos ternurentos, alguns para depois ser barbaramente abandonados e oferecemos visitas pedagógicas a jardins zoológicos, os animais, nos contos, até falam, os animais “servem” para ensinar a ternura às crianças, depois, mais tarde, ensinamos as crianças a mentir e ensinamos-lhes que os únicos valores na vida são o dinheiro e os bens materiais e pomo-las a trabalhar em bancos a título de lhes assegurar o futuro.
A Metamorfose, de certa forma, é um conto em que, de uma forma bizarra, há animais, poderíamos mesmo, no limite, classificá-lo de conto de terror. Outra das funções do elemento animal nas narrativas é a introdução do elemento horrífico, não poucas vezes os animais encarnam os medos humanos e são até usados junto das crianças como instrumentos de susto e punição.
A obra de Kafka é de difícil classificação: há cartas que não são cartas, como é o caso da “carta ao Pai”, e que dão lugar a contos, contos a romances, entradas de Diários que dão aforismos, etc. Um mar de fragmentos amalgamados de ideias que nascem numa forma e evoluem para outra. O trabalho de análise da obra não é fácil, desde logo torna-se difícil estabelecer em que contexto de escrita nasce um tema e em que forma ele se desenvolve, basta ter presente que a maioria dos romances estão inacabados, o que se tornou um vastíssimo tema entre os kafkólogos.
Kafka é como Chopin: quer sair da prisão! Em Chopin a frase musical e a forma nunca terminam, há sempre mais intensidade depois da intensidade anterior, a tentativa de fuga é feita numa intensa fragrância inebriante, mas não deixa de resultar do desespero e assim também é Kafka: quer sair do impasse! Tudo na obra de Kafka se resume a um gigantesco impasse, cada passo em frente apenas aumenta a densidade do lodo e a espessura dos grilhões da prisão.
É aqui que Kafka faz a última tentativa de fuga: transformar-se num animal! O animal não responde às amarras da família, nem da burocracia, nem da sociedade. À força de ser incapaz de lidar com os ditames da animalidade, o homem, simplesmente, antropologiza-o, i.e., olha para o animal a partir das categorias de homem e é assim que os gatos são valorizados por serem mansos e os cães pela fidelidade. A história de muitas espécies animais é a história da sua domesticação simbólica e humana e concomitante antropologização. Segundo Félix Guattari, este mergulho no mundo animal em Kafka abre a porta do inconsciente, assim sendo, quase paradoxalmente, a obra de Kafka tem mais um caráter terapêutico que literário. Muitas vezes, numa leitura desatenta, é difícil perceber o que há de tão extraordinário na obra de kafka, mas a questão é, justamente, que essa ambiguidade produz, em paralelo ao discurso literário manifesto, um efeito sobre o processo psíquico primário do inconsciente do leitor e simultaneamente abre a porta a vias de expressão do inconsciente coletivo de toda uma época – o inconsciente é sempre individual (Freud) e coletivo (Jung), é sempre transpessoal.
Olhando para o compacto que é a obra kafkaniana observamos um fluxo interno temático-simbólico e formal, dos romances inacabados aos contos, das novelas às cartas e artigos. Uma obra quase informe que invade o inconsciente do leitor, terminamos sempre qualquer leitura com uma sensação indescritível. Esse fluxo interno torna a obra multirresistente aos modernos instrumentos analíticos literários: linguística, estruturalismo e todos os outros claramente se tornam precários face a esta monstruosidade em fuga analítica. Esse fluxo traduz-se em estranhas coreografias de personagens onde os pares de funcionários públicos medíocres se refletem e reaparecem na dualidade dos pais, assistimos a todo um desfile de ignóbeis, exatamente como o nosso mundo: polícias, juízes, funcionários subalternos, burocratas. Kafka monta o dispositivo narrativo de forma a que haja uma metamorfose entre os medíocres exteriores e a família.
A resposta final de Kafka é muito clara: morremos como um animal após uma vida de luta contra fantasmas tranquilos e ávidos, a resposta humana foi a construção de meios de transporte cada vez mais rápidos, de aceleração dos automóveis, da internet e da vida, na tentativa de criar uma alucinação consoladora… mas os espíritos não morrem de fome, nós sim.
“… é um comércio com fantasmas, não apenas o do destinatário, mas também com o seu fantasma ; o fantasma cresce sob a mão do escritor, na carta que redige ou, a fortiori, cresce numa série de cartas, onde uma corrobora a outra e é mesmo chamada a testificar da outra. Como é que nasceu a ideia que as cartas poderiam fornecer ao homem um meio para se comunicar? Uma pessoa que esteja longe, o máximo que podemos fazer é pensar nela, agarrar mesmo, só alguém que esteja próximo: tudo o resto está fora das forças humanas. Escrever cartas é despir-se perante os fantasmas e eles esperam esse momento avidamente. Os beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. Os fantasmas alimentam-se desta abundante comida e multiplicam-se. A humanidade percebe isso e luta contra este perigo. A humanidade tentou eliminar o máximo possível o fantomático entre os homens, procurou estabelecer uma paz com os fantasmas através da invenção do caminho de ferro, do automóvel e do aeroplano, mas isso não serve para nada (quando as invenções surgiram a queda já se tinha iniciado); ao adversário é muito mais calmo e muito mais forte; depois, o homem inventou os correios e o telégrafo sem fio a ver se resultava. Os espíritos nunca morrerão de fome, mas os homens morrerão.”
Franz Kafka, Cartas a Milena, tradução Frank Wan
maravilhosa resenha. Falando de Kafka , pude perceber a universalidade deste comentário, pois pode se estender à verdadeira literatura e sua função. Congratulations!