O silêncio dos anjos
Já há muitos anos que os livros policiais são muito mais que um mero livro policial: resta ainda o preconceito, sobretudo dos literatos, contra o género literário – os preconceitos têm uma pele dura como os lagartos. O género policial é um campo fértil para grandes talentos literários.
No fundo, “Uma crença silenciosa em anjos” (A quiet belief in angels) nem sequer é um policial, deveríamos classificá-lo como um thriller, uma vez que esperamos o desenlace e o leitor é embalado num ambiente de expectativa, ansiedade, entusiamos e sucessivas surpresas.
Uma crença silenciosa em anjos é o quinto policial escrito por R.J. Ellory. É escrito na primeira pessoa e o texto vai sendo polvilhado de magníficas frases e pensamentos. Se retirássemos citações avulso ninguém diria que as frases são de um livro policial.
As frases arrastam-se de uma forma lânguida e por isso o livro torna-se extenso e a narrativa lenta obrigando-nos a demorarmo-nos na magia das palavras, uma dança em que aos capítulos mais narrativos, seguem-se verdadeiras reflexões filosóficas.
De forma subtil e mascarada por um ambiente de thriller, as grandes questões filosóficas vão sendo levantadas em ritornello permanente.
As vítimas, crianças, vão desfilando, os crimes hediondos vão sendo descritos um após o outro, mas, no fundo, tacitamente e de forma indireta, quem vai sendo apresentado é o assassino em série e as suas motivações. Nas perguntas dos investigadores estão as pinceladas que fazem o retrato do assassino. Como é possível que a humanidade produza este tipo de ser?
A maldade é apenas o conjunto dos atos maus? Ou os atos maus são filhos da maldade ou mesmo, como diz Kafka, filhos do Mal?
Outro tema interessante com que nos identificamos: a polícia, no fundo, apenas faz face a um tipo de delinquência e é, na maior parte das vezes, em toda a parte do mundo, incapaz de “resolver” as grandes questões. Quando um crime levanta questões sociológicas e/ou antropológicas a abordagem policial mostra-se incapaz e é por isso que nas séries televisivas e neste tipo de narrativas é sempre um “herói” isolado, muitas vezes contra tudo e contra todos, que acaba por “resolver” o mistério ou denunciar o assassino – estão sempre presentes na nossa mente as limitações intelectuais, devido aos seus métodos convencionais, do Inspetor Lestrade face à criatividade de Sherlock Holmes. Os polícias em si não são particularmente maus ou incapazes, é toda a estrutura social de poder que é incapaz de dar resposta aos grandes problemas da humanidade.
A tradução francesa “Seul le silence” é um hino à arte da tradução.