A casa inacabada – Conto de Jonatan Magella [Revista Recorte Lírico]

Jonatan Magella

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Sofá reclinável, tapete felpudo, televisão 50 polegadas; geladeira duplex e inox, cooktop 5 bocas, armário embutido, comida ultra processada; cama box king size, colcha de linho, fronhas de rei e rainha; ar-condicionado eternamente ligado; paredes impecavelmente lisas; revestimento laminado no chão: os recém-casados habitaram a casa recém-construída. Mas os incomodava um sentimento de que ela não estava pronta. Sentiam-se presos. E decidiram que, mesmo nova, seria reformada.

Apareceu-lhes um pedreiro apelidado de Marcelo Maluco. Maluco porque pegava o dinheiro dos clientes, gastava tudo com bebidas e não voltava para dar satisfação. Felizmente encontraram outro, seu Luís. Bem mais confiável. Pediram a ele que quebrasse uma parede. Vamos fazer uma cozinha americana. É isso. A casa é fechada demais. Precisamos quebrar, seu Luís. Arejar.

Durante a obra um mundo novo de possibilidades se abriu: o marido fazia a comida para o pedreiro e seu ajudante, a mulher passava o café que ofereceriam à tarde. O rádio ficava ligado o dia inteiro pra distrair os
construtores. E o casal se aproveitava para dançar escondido. Agora, com a nudez das paredes descascando pelas marretadas do pedreiro, começavam a ganhar intimidade com a casa. Quando seu Luís concluiu a obra, o casal
comprou cerveja e convidou os dois profissionais para a janta. Brindaram às mudanças. Às mudanças, todos repetiram.

Mas algumas semanas passaram e lá estava a sensação de clausura outra vez. Durante seis meses não houve música, nem dança, nem festa. Só insatisfação. Para dar um basta, o casal resolveu ampliar o quarto. Mas chamaram o seu João, desta vez, que era mais experiente. João opinou: vamos quebrar aquela parede, recuá-la um metro, vocês perderão um pedaço do quintal, mas ganharão um quarto maior. Seu João era do tipo que trabalhava sozinho. Mas o marido seguiu fazendo comida para pedreiro e ajudante. Isso fez com que seu João comesse por dois, e ficasse tão satisfeito a ponto de tirar uma sesta por cima dos entulhos: forrava um plástico preto, usava sua mochila como travesseiro e dormia trinta minutos. O casal observava a cena com alegria. A música tinha voltado à casa; as danças, também. Dessa vez, não mais escondidos. Pelo menos enquanto o pedreiro dormia depois do almoço. Até que a obra acabou e o ânimo foi embora junto com seu João. Foram meses de desolação. De não querer voltar pra casa após o trabalho. Numa das tardes quentes após o réveillon, haviam acabado de comer um sanduíche no almoço (não tinham ânimo para cozinhar fora das obras). O marido resolveu tomar banho e a mulher o seguiu. Sob a água fria, se amaram após quase um mês de distância. A voracidade do sexo fazia a cabeça de um e o calcanhar do outro baterem nas paredes do box. Foi o bastante para, depois do gozo, acharem que a estreiteza do banheiro era o problema da casa. Deixaram de viajar no carnaval, mas duplicaram o banheiro. Na verdade, Paulo e Henrique que
duplicaram. Dois pedreiros relativamente jovens que pareciam intelectuais da construção. Usavam muitos termos técnicos que o casal não entendia, mas a casa mudou outra vez. Antes de dormir, havia planos de se amarem num banheiro grande, com banheira e tudo.

Contudo, três reformas depois, mesmo a casa já sendo praticamente outra, ainda não se sentiam aconchegados. Pensaram em vendê-la. Em alugá-la. Ou em simplesmente fechá-la e fugir dali. Viver andando a esmo mundo a fora. Foi aí que a esposa teve a ideia final: e se trocarmos as janelas e as portas por outras maiores? Sentiremos o vento. Aumentaremos a sensação de liberdade. Mas não temos mais dinheiro, reclamou o marido. Ela prosseguiu: a gente pega um empréstimo no banco, precisamos nos sentir em casa. Ao ver o ânimo da companheira voltando, ele aceitou. O problema foi que Luís e João não toparam: estavam magoados por terem sido trocados. do a casa quase totalmente aberta. No dia seguinte – já com o adiantamento da primeira semana de trabalho – o pedreiro desviou e foi pra um boteco. O casal fez o café da manhã para esperá-lo. E esperaram. Muito. Até perceberem que foram enganados.

Desolados, os jovens marido e mulher choraram por horas, abraçados sobre os destroços da casa.

Foi um gesto de resistência quando a mulher levantou do chão. Ligou o rádio e convidou o marido para dançar. Primeiro escondidos, depois na sala de estar sem janelas, sob os olhares dos transeuntes. Então muita comida foi feita, e beberam ao caos, e fizeram amor sobre as ferramentas; depois tiraram a sesta em cima do entulho; e assim veio a noite, e adormeceram
com o som ligado, e a música nunca mais parou de tocar, e os corpos entediados dançaram para sempre; e houve uma revoada de móveis, e as plantas invadiram os cômodos, e eles fizeram pinturas nas paredes, e o
céu era uma TV de polegadas infinitas, porque a casa se fundira com o mundo. A essa altura, eles haviam se esquecido de que o pedreiro não retornou nem retornaria nunca, e tudo bem: a casa inacabada parecia-lhes,
enfim, pronta.

Conto originalmente publicado na Edição Jorge Luis Borges, da Revista Recorte Lírico.

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